Se isto é um
homem
Vós que viveis tranquilos
nas vossas casas aquecidas,
vós que encontrais regressando à noite
comida quente e rostos amigos:
considerai se isto é um homem
quem trabalha na lama
quem não conhece paz
quem luta por meio pão
quem morre por um sim ou por um não.
[…]
A Viagem
«A chegada de um pequeno destacamento de SS alemães
deveria ter levantado dúvidas até mesmo nos optimistas; todavia, conseguimos interpretar
de diferentes formas esta novidade, sem tirar a mais óbvia das consequências,
pelo que, apesar de tudo, o anúncio da deportação encontrou os nossos espíritos
impreparados. No dia 20 de Fevereiro, os alemães inspeccionaram o campo cuidadosamente,
fizeram públicas e sentidas queixas ao comissário italiano pela deficiente
organização do serviço de cozinha e pela escassa quantidade de lenha
distribuída para o aquecimento; até chegaram a dizer que dentro em breve seria
montado um posto de enfermagem. Mas na manhã de 21 soube-se que no dia seguinte
os judeus iriam partir. Todos, sem excepção. Também as crianças, também os
velhos, também os doentes. Para onde, ninguém sabia.
Preparar para quinze dias de viagem. Por cada um
que faltasse à chamada, dez seriam fuzilados. Só uma minoria de ingénuos e de
iludidos teimou em manter a esperança: nós
tínhamos falado demoradamente com os refugiados polacos e croatas, e sabíamos o
que significava partir.
Para os condenados à morte, a tradição prevê um
cerimonial austero, destinado a pôr em evidência o facto de qualquer paixão e
qualquer raiva já se encontrarem apagadas, e que o acto de justiça nada mais
representa senão uma triste obrigação para com a sociedade, de tal forma que o
próprio carrasco o pode acompanhar com piedade da vítima. Por isso, evita-se
que o condenado tenha qualquer preocupação exterior, é-lhe concedida a solidão
e, caso o deseje, todos os confortos espirituais; procura-se, em suma, que não
sinta em seu redor o ódio e o arbítrio, mas a necessidade e a justiça, e,
juntamente com a punição, o perdão.
Mas a nós isto não foi concedido, porque éramos
muitos e o tempo era pouco, e afinal
de que nos devíamos arrepender, e de que devíamos ser perdoados? O
comissário italiano, portanto, deu ordem para que todos os serviços
continuassem a funcionar até ao anúncio definitivo; a cozinha continuou, pois,
em actividade, os faxinas da limpeza trabalharam como de costume, e até os
professores da pequena escola deram aulas à tarde, como todos os dias. Mas as
crianças naquela tarde não tiveram trabalhos para casa. Caiu a noite, uma noite
tal, que se percebeu que olhos humanos não a poderiam presenciar e sobreviver.
Todos o sentiram: nenhum dos guardas,
nem italianos nem alemães, teve a coragem de ir ver o que é que faziam os
homens quando sabiam que iam morrer.
Cada um despediu-se da vida da forma que lhe era
mais própria. Alguns rezaram, outros beberam para além do normal, outros inebriaram-se
com a última nefanda paixão. Mas as mães ficaram acordadas para preparar com
amoroso cuidado a comida para a viagem, e lavaram os filhos, e fizeram as
malas, e de madrugada os arames farpados estavam cheios de roupas de criança
estendidas a secar ao vento; e não se esqueceram das fraldas, dos brinquedos,
das almofadas e das cem pequenas coisas que elas bem conhecem, e das quais os
filhos sempre precisam. Não fariam também o mesmo? Se amanhã
esperassem ser mortos com o vosso filho, não lhe dariam hoje de comer?
A Barraca 6A era ocupada pelo velho Gattegno, com a
mulher e os seus muitos filhos, os netos, os genros e as noras trabalhadoras.
- Todos os homens eram carpinteiros;
- Vinham de Trípoli, através de muitas e longas viagens, e traziam sempre consigo as ferramentas do ofício, o trem de cozinha, os acordeões e o violino para tocar e dançar depois do dia de trabalho, porque eram pessoas alegres e devotas;
- As suas mulheres foram as primeiras a completar os preparativos para a viagem, silenciosas e rápidas, de forma a terem tempo para o luto;
- Quando tudo ficou pronto, as fogaças cozidas, as trouxas atadas, então tiraram os sapatos, soltaram os cabelos, dispuseram no chão as velas fúnebres, acenderam-nas conforme o costume dos antepassados, sentaram-se no chão em círculo para a lamentação, e toda a noite rezaram e choraram.
Muitos de nós parámos diante da sua porta, e nas nossas almas desceu,
nova para nós, a dor antiga do povo que não tem terra, a dor sem esperança do
êxodo renovado século após século». In Primo Levi, Se Questo è um Uomo, Einaudi,
Turim, 1958, Se Isto é um Homem, 1998, 10ª edição 2013, Teorema, ISBN
978-972-695-945-8.
Cortesia de Teorema/JDACT