Londres, 24 de Julho de 1930
«Foi no Verão de 1923, no Verão em que vim de Cambridge para cá, que,
apesar dos desejos da minha tia de que regressasse ao Shropshire, decidi que o
meu futuro estava na capital e arrendei um pequeno andar no número l4-B de
Bedford Gardens, em Kensington. Recordo-o agora como o mais maravilhoso dos
verões. Depois de passar anos rodeado de colegas, tanto na escola como em
Cambridge, sentia grande prazer na minha própria companhia. Apreciava os
jardins públicos de Londres, o sossego da Sala de Leitura do Museu Britânico e
usufruía tardes inteiras a passear pelas ruas de Kensington, gizando planos
para o meu futuro, parando de quando em quando para me extasiar com o facto de
aqui em Inglaterra, mesmo no meio de uma cidade tão grande, se encontrarem
trepadeiras e hera cobrindo as fachadas de belas casas.
Foi num desses vagarosos passeios que encontrei inteiramente por acaso
um antigo amigo da escola, James Osbourne, e, ao descobrir que morava perto de
mim, lhe sugeri que me visitasse quando passasse pela minha casa. Embora nessa
altura ainda não tivesse recebido uma única visita nos meus aposentos, fiz o
convite com confiança, pois escolhera-os com algum cuidado. A renda não era
elevada, mas a minha senhoria mobilara a casa com um gosto reminiscente de um
tranquilo passado vitoriano. A sala, que recebia sol com abundância durante a
primeira metade do dia, continha um sofá com uns bons anos, assim como duas confortáveis
poltronas, um aparador antigo e uma estante de carvalho cheia de enciclopédias
em decomposição, tudo coisas que, estava convencido, mereceriam a aprovação de
qualquer visitante. Além disso, quase imediatamente após ter alugado a casa,
fora a Knightsbridge e comprara um serviço de chá Queen Anne, vários pacotes de
bons chás e uma grande lata de biscoitos. Por isso, quando Osbourne apareceu
uma manhã, poucos dias depois do nosso encontro, encontrava-me preparado para o
servir com uma segurança que nem por um momento lhe permitiu supor que era o
meu primeiro convidado.
Mais ou menos nos primeiros quinze minutos, Osbourne andou agitadamente
pela minha sala, felicitando-me pelas instalações, examinando isto e aquilo,
olhando de vez em quando pelas janelas e admirando-se com o que quer que se
passava lá em baixo. Por fim deixou--se cair no sofá e pudemos trocar notícias,
nossas e de antigos amigos da escola. Lembro-me de que passámos uns momentos a
discutir as actividades dos sindicatos operários antes de nos embrenharmos num
longo e agradável debate sobre filosofia germânica, que nos permitiu revelar
mutuamente as façanhas intelectuais que cada um de nós realizara na sua
universidade. Depois Osbourne levantou-se e recomeçou a andar de um lado para o
outro, ao mesmo tempo que anunciava os seus vários planos para o futuro.
- Sabes, estou com vontade de me
dedicar à edição. Jornais, revistas, esse tipo de coisas. Na verdade, gostava
de escrever pessoalmente uma coluna. Acerca de política, questões sociais.
Isso, claro, se não decidir dedicar-me eu próprio à política. E tu, Banks, não
tens realmente nenhuma ideia do que queres fazer? Repara, está tudo ai fora à
nossa espera, apontou para a janela. - Tens com certeza alguns planos. - Suponho
que sim - respondi, sorrindo. - Tenho uma ou duas coisas em mente. Dir-tas-ei
em devido tempo. - O que estás a esconder na manga? Vamos, desembucha! Olha que
tenho os meus métodos para te fazer falar!
Mas eu não lhe revelei nada e passado pouco tempo consegui pô-lo de
novo a discutir filosofia, poesia ou qualquer coisa desse género. Depois, cerca
do meio-dia, Osbourne lembrou-se de súbito de que tinha um encontro para
almoçar em Piccadilly e começou a pegar nas suas coisas. Só à porta, quando ia
a sair, se voltou e disse: - Olha, meu velho, queria dizer-te uma coisa. Esta
noite vou a uma festa. Em honra de Leonard Evershott. O magnata, como sabes. É
um tio meu que a oferece. Bem sei que é um bocado em cima da hora, mas pensei
que talvez quisesses aparecer. Estou a falar a sério. Há muito tempo que
tencionava passar por cá, mas sabes como é, nunca calhou. É no Charingworth.
Como não respondi logo, deu um passo na minha direcção e acrescentou:
- Pensei em ti porque me lembrei
... Lembrei-me de que estavas sempre a fazer-me perguntas acerca de eu ser bem relacionado. Oh, deixa-te de
fitas! Não finjas que não te lembras! Costumavas interrogar-me implacavelmente.
Bem
relacionado? Que significa, ao
certo, ser bem relacionado? Por isso pensei: aqui está uma oportunidade
para o velho Banks ver com os seus olhos o que é ser-se bem relacionado. - Abanou
a cabeça, como quem se lembra de alguma coisa, e acrescentou: - Meu Deus, eras
um sujeito muito esquisito na escola». In Kazuo Ishiguro, When We Were Orphans,
2000, Quando Éramos Órfãos, Gradiva Publicações, Lisboa, 2000, ISBN
972-662-761-3.
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