sábado, 2 de fevereiro de 2013

Salvaterra. Jean Lartéguy. Leituras. «Sebastião e Baptista tinham conseguido fugir da herdade, Fontugne, feito prisioneiro e deportado, passara um ano em Dachau. Do campo de concentração retinha na lembrança sensações confusas de fome e fadiga»

jdact

Sebastião Josc. 1 de Dezembro de 1965
«Ventos gelados varriam o planalto, fazendo bailar a neve em pó e perseguindo no céu, com uivos, as nuvens negras. Num cabeço, junto de um túmulo rodeado por uma grade de ferro enferrujada, quatro homens abriam uma cova com o auxílio de uma picareta. A terra gelada saltava em lascas duras, nas quais vinha embater a pá de ferro. Às vezes, um dos homens praguejava, outro tossicava ou batia com os pés para se aquecer. Tinham-se reunido ali o doutor Sebastião Josc, maire de Salvaterra; Manuel, seu administrador; Fontugne, pastor da herdade de Cabres, e Baptista Pons, cuja mãe era proprietária da Estalagem dos Quatro Caminhos.
À esquerda, a uns trezentos metros, no nível inferior, no cruzamento da estrada alcatroada e de três caminhos de terra batida, erguia-se essa estalagem, edifício construído em cimento, de reboco amarelado e coberto de telha marselha. Em frente ficava a quinta dos Puech, que fora incendiada, e onde vinte e quatro guerrilheiros, entre os quais uma mulher, Natália, haviam sido cercados e massacrados, há já vinte anos, a 18 de Janeiro de 1944.
Do outro lado da estrada, para perpetuar esta recordação, erguia-se uma memória em cimento, com a cruz da Lorena e uma caveira. O vento, a neve e a chuva haviam apagado os nomes inscritos na placa de calcário mole, fixada sobre um dos lados do monumento. Sebastião, Baptista e Fontugne encontravam-se com eles naquelas estranhas guerrilhas que não haviam sido baptizadas nem com o nome de uma vitória, nem de um guerreiro, mas simplesmente com a matrícula: 147, número de código de uma vasta operação que jamais fora executada.
Passados vinte anos, lembravam-se às vezes dum rosto, dum gesto, da maneira como algum deles puxava as calças, como outro enrolava os cigarros ou chamava o cão. Sebastião e Baptista tinham conseguido fugir da herdade, Fontugne, feito prisioneiro e deportado, passara um ano em Dachau. Do campo de concentração retinha na lembrança sensações confusas de fome e fadiga. Quando regressara, sem ter compreendido nem aprendido o que quer que fosse, entregara-se com alívio ao seu antigo mester de pastor.
Manuel não estava com eles quando a herdade foi atacada. Pertencia a um grupo F. F. I. dos Cévennes, que não fizera senão umas três ou quatro ligações com os homens a quem chamavam ao sul do Aigoual os soldados de Londres. Quando a cova estivesse terminada, sepultariam nela o que fora chefe desta Missão 147, o ex-coronel Lourenço de Portailles, que nunca pusera os pés em Salvaterra antes de, em 20 de Outubro de 1943, aí ser largado de paraquedas, mas cujo nome desde há séculos já, naquele local, era odiado por rodos os protestantes.
Na estalagem, o corpo esperava, estendido numa grade de madeira. Velavam-no mulheres vestidas de preto, umas lendo o livro dos Salmos, outras passando o rosário. Em volta do cadáver, que não pertencia nem a umas nem a outras, tornavam a encontrar-se velhos ódios religiosos e políticos, que o tempo e a miséria não tinham extinguido completamente. - É verdade - perguntou Manuel - que foi preciso separar à coronhada Lourenço e Natália, ele vivo e ela morta? Atirou com a pá e Sebastião estendeu-lhe a mão para o ajudar a sair da cova. Fontugne substituiu-o. – Düeno...
Manuel tratava às vezes o médico por düeno, patrão, mas ao mesmo tempo, com ostentação, dava-lhe tratamento de tu, para mostrar a todos que se mantinha um ser livre. - Düeno, é verdade que tu e Pabanel casaram Lourenço e Natália antes de saírem a correr da herdade, debaixo de uma chuva de balas, e que foi neste local que a atingiram? E apontou para o grande pórtico que se erguia, isolado, no meio das paredes enegrecidas e arruinadas». In Jean Lartéguy, Sauveterre, Press de la Cité, 1966, Salvaterra, Livraria Bertrand, Lisboa.

Cortesia de L. Bertrand/JDACT