A Chegada a Angers
«Era um fim de Setembro doce, no clima angevino que
ele experimentava pela primeira vez, pelo acaso daquele encontro de Verão de
Dinan, onde acabara por se aborrecer. Telegrafou então ao hotel que lhe
indicara o simpático Monsieur Grasset. O conde Bankow preferira há muito ir a
Paris, mas as suas finanças não lhe permitiam despesas de boulevard, disfarçou ele,
com humor, entre homens du monde. Desceu a Nantes para
apanhar a linha de Angers e assim desembarcava agora na estação de Saint-Laud,
um edifício modesto, com um alpendre e depósitos de maquinaria e ainda um hall
para mercadorias que se acumulavam diante da praça triste onde três hotéis se
perfilavam, sem grande convicção, o de France, o dos Voyageurs e,
inevitavelmente, o de La Gare. Mas ele tinha à sua espera, no cais,
desbarretando-se, o chasseur de l'Hotel du Cheval Blanc, que logo tomou conta das
duas malas e da chapeleira, levando-as a um fiacre com o cocheiro aguardando,
para as subir ao seu assento. Não foi preciso qualquer ordem, e a carruagem
partia já, num pequeno trote que lhe pareceu de bom augúrio, depois das fadigas
do caminho-de-ferro onde viajara sem companhia no seu compartimento, de veludo
ainda novo, de tom esverdeado, capitonné.
A paisagem, pelo caminho, não o animara, e
sentia-se, como sempre, alheio às belezas da natureza, mesmo outonal. Trouxera
de Inglaterra um livro de um jovem romancista americano, Henry James, que
acabara de sair e mal folheara em Dinan, A Little Tuor in France. The
American, que lera em Bristol, divertira-o imenso, e achava-se com
razões para isso, mas reservara as suas impressões de viagem para livro de
distracção, na estada que pensava fazer em Angers. No comboio, porém, procurara
as páginas dedicadas à cidade e ficara desconsolado: pertenceria ela a esta desagradável categoria de velhas
cidades que foram, como se diz, remendadas?
E via-se a deambular, como James, irritado, por boulevards
de segunda categoria procurando, vagamente, em torno, fachadas inexistentes, de
outrora. Angers la noire dos telhados de ardósia, vítima de
melhoramentos modernos, indigna do seu
admirável nome... My God!, -
disse ele, e logo: Virgem Santíssima!,
em que se metera ele! Então a Atenas
do Oeste... É verdade que Coimbra também pretendia sê-lo, mais
abaixo... Lembrava-se por alto de Michelet, outrora lido. De Mérimée tinha-lhe
falado Monsieur Grasset. O fiacre seguia o seu caminho, passara uma rua nova,
sem interesse mas limpa, atravessara uma praça que tinha ar de ter sido aberta
recentemente, e atravessara, choutando, um largo boulevard plantado de
tílias, deixando-lhe tempo para olhar, ao fundo, à sua esquerda, o célebre
castelo do Bon Roi René, mas só de esguelha, com uma estátua pequenina à ponta.
A Rue des Lices tinha, de um lado e do outro, uma harmonia calma, na doçura dos
seus tons ocre.
Logo à entrada, ele reparou num edifício longo, de
dois andares, o segundo, com uma galeria vidrada, de atelier, de fotógrafo
famoso, soube mais tarde, mas foi sobretudo a massa imponente da torre de Saint
Aubin que o impressionou. Era, sabia ele, um monumento respeitável, restos de
uma abadia beneditina, bem românico da região. Mas o fiacre voltou logo à esquerda
para entrar sob um largo portão num pátio com grandes vasos de cerâmica onde se
abriam palmeiras, com uma alegria fictícia. Ao fundo, outro portal dava para um
terreiro onde o cliente pôde ver uma caleche atrelada. Era a parte de serviço,
mas ele lamentava não ter tido possibilidade de ver, ao chegar, a fachada da
rua do hotel onde ia ficar.
Depois, sairia a olhá-la, na Rue Saint-Aubin, mas
sentia que uma divertida curiosidade tomava conta dele. Porque não, Angers?... Havia, porém, que aproveitar bem o tempo,
agora que despachara o Primo posto à venda em Fevereiro em
Portugal, e com êxito já sabido, e mesmo pelo lado político do Teófilo e do Rodrigues de Freitas, e
que uma tradução francesa em projecto parecia fazer-se. E emendava últimas
provas do último Crime que sairia ainda esse ano, talvez. Outros planos
fervilhavam-lhe no espírito, no isolamento de Newcastle, e o maior deles ia
ganhando corpo, inchando, para além de um projecto já do ano anterior. E nisso
ia ele empregar o seu tempo angevino, buscando a personagem feminina que
precipitasse o drama que já era dos Maias. Como poderia ele sabê-lo, no pátio
do hotel, recebido pelo gerente, de sobrecasaca grave, um sorriso de amáveis
boas-vindas na boca? Monsieur le Consul
a fait un bon voyage? Pas trop
fatigué? Croyez, Monsieur le
consul, que nous sommes à votre entière disposition...?
In José Augusto França, A Bela Angevina,
Editorial Presença, Lisboa, 2005, ISBN 972-23-3359-3.
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