«Os anos passados na actividade diplomática foram indubitavelmente significativos
para o desenvolvimento pessoal de Góis.
Portugal, devido ao seu isolamento geográfico no canto ocidental da Europa, não
lhe poderia ter dado uma tão ampla compreensão das forças históricas que iriam
produzir um novo mundo europeu. Através da paciente observação e da investigação
dos países da Europa que conheceu, aprendeu a apreciar novas perspectivas em
muitos campos da actividade humana. Ganhou também uma maior compreensão do
cerne da sua própria existência. Não há dúvida de que, sem a experiência
diplomática, as realizações intelectuais de Góis teriam assumido um carácter bastante diferente.
Formação Intelectual e Espiritual de Góis
Uma vez em Antuérpia, intensificou-se extraordinariamente, em Góis, o desejo de aprender. Se as
actividades comerciais da cidade não reservavam grandes surpresas para o
recém-nomeado diplomata da casa real de Lisboa, as oportunidades culturais que
ela oferecia excediam, sem sombras de dúvida, tudo quanto ele conhecera no
passado. A economia florescente de Antuérpia atraía muitos homens célebres, e a
proximidade da Universidade de Lovaina levava a essas paragens acolhedoras os
mais distintos humanistas com demoradas estadias. Quando Góis assumiu o seu posto, a memória de Thomas More, de Dürer, e, sobretudo, de Erasmo, que tinha estado em
Antuérpia havia pouco tempo, estava bem viva nos círculos que frequentava. Se Góis já tinha em alto apreço o nome de Erasmo quando estava na sua terra
natal, a obra e a personalidade do humanista holandês tornaram-se-lhe muito
mais reais na Flandres. Ficou a dever o conhecimento íntimo de Erasmo, que então adquirira, à
sua associação com Cornelius Grapheus,
poeta e conhecido humanista, que foi um dos mais chegados de Góis durante o tempo que ele permaneceu
na Flandres.
Grapheus tinha grande
estima por Erasmo e Góis passou a nutrir um profundo
respeito pelo celebrado humanista. Todavia, passar-se-ia quase uma década antes
que Góis fizesse qualquer esforço
para conhecer pessoalmente o grande Erasmo.
Na qualidade de representante dum poderoso rei português que Erasmo conhecia, e que esperava
que viesse a ser seu patrono, Góis
poderia ter proposto um encontro, na altura que quisesse. A razão dessa reserva
pode ter sido o desejo de se fazer notar por Erasmo, na sua qualidade de humanista, por mais modesto que
fosse
Passaram-se, contudo, quase dez anos antes que Góis fosse aceite como pensador e historiador. Os primeiros anos
como secretário da Casa da Índia foram atarefados e não lhe deixavam
vagar para ocupações de carácter humanístico. Quando se preparava finalmente
para começar um estudo intenso da língua e da literatura clássica, Góis pediu a Cornelius Grapheus para ser seu professor. A escolha
reflectia o espírito do próprio Góis. A sua chegada a Antuérpia tinha coincidido
com o regresso de Grapheus à
cidade, depois de um ano na prisão, em Bruxelas, como uma das primeiras vítimas
da Inquisição (maldita), estabelecida havia pouco na Flandres. Quando os dois
homens se conheceram, já as actividades de Grapheus
lhe tinham custado o cargo de secretário de Antuérpia. É pouco provável que Góis desconhecesse a ousada crítica
feita por Grapheus à Igreja
Católica, ou a sua subsquente aprovação de Lutero,
ou ainda as suas relações de amizade com Dürer
(suspeito como religioso), durante a visita do artista a Antuérpia. Sendo Góis um diplomata que servia um rei
mui católico, a sua amizade por um homem que tinha dado como presente
de despedida a Dürer o devastador
panfleto O Cativeiro da Bobilónia pode parecer deveras surpreendente;
porém isso deve ser interpretado como um sinal da inquietação espiritual de Gois e do carácter perscrutador do seu temperamento
religioso.
Embora seja muito possível que no início da associação com Grapheus, Góis se deliciasse com ele especialmente como companheiro de música
(ambos dominavam vários instrumentos), passou a interessar-se mais por outros
talentos do amigo, à medida que os laços entre eles se tornavam mais fortes. Num
longo poema dedicado ao seu patrono Grapheus
descrevia com manifesto prazer como tinha guiado
[Góis] até ao cume sagrado da alta montanha
das musas. Revelava surpresa pelo facto de Góis, que já era conhecido pelo seu talento musical, se tornar um estudante
de latim tão aplicado, e comparava os seus esforços com os de Catão em relação ao grego». In
Elisabeth Feist Hirsch, Damião de Góis, Fundação Calouste Gulbenkian, Lisboa,
1967.
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