Lisboa
«Que hei-de dizer? Descrevê-la? Calar-me? Farei uma oração a Santo
António e outra a Camões, os santos padroeiros da terra e, com isso, terei
rendido a graça, que justifica o ditado…
- Quem não viu Lisboa, não viu coisa boa… Mirei e admirei.
História, tradição, realidade… todos acham. A história de Portugal, a
tradição grega, moura, afonsina… O Tejo que se abre ao Oceano e por onde saiu e
entrou a Glória de Portugal… Recuso-me a ser banal, em Lisboa. Guardo-a para
mim. Apenas, filho pródigo da família, reparo que a sala de receber, desse solar
de Portugal, tem muito
das coisas que deixei alem-Atlântico. Não é o Brasil, Rio, Baía, S.
Paulo… apenas expansão e desenvolvimento, répricas, tréplicas, de Portugal,
Lisboa, Porto, Braga…?
Estou em casa, na minha casa. Apenas, se menor aqui e ali, se com
outro ambiente, uma natureza diferente, em compensação lá… ainda não há Torre
de Belém, os Jerónimos, a Sé, o Museu das Janelas Verdes, a Torre do Tombo, o
Museu dos Coches, o Arquivo Colonial, o Museu de São Roque, esses Museus-Paços,
que são as casas nobres... Completamo-nos, porém. Na casa paterna há mais tempo;
na do filho há mais novidade. Natureza, expansão, possibilidades, talvez. Mas, nem
nós poderíamos ser nada sem eles, pois que somos eles no sangue e na memória…
nem eles jáá serão possíveis sem nós, o filho grande e amado, que criaram, com
o sangue, com a memória…
Simbolicamente, curvo-me e beijo o chão de Lisboa, como o filho que
torna ao lar dos seus maiores beija, em mente, a soleira da casa paterna,
dentro da qual o esperam seus parentes, seus amigos, e as memórias dos que se
foram, e a criaram, e criaram o orgulho que tem de ser português, pois que
brasileiro é apenas um lusitano da América, voz nova na velha língua portuguesa…
Evitemos, porém, a ênfase, que é inadmissível, em boa sociedade. Lembremo-nos,
para disfarçar a emoção, de um livro faceto, do nosso comum e grande Eça de
Queiroz. Na A Cidade e as Serras, o digno preto, criado de Jacinto, comenta
o filho nascido à menina da Flor da malva; - Sua excelência brotou…
Dom Portugal também brotou, na América. O broto é o Brasil. Mas o tronco
é o mesmo.
Odivelas. Mafra. Sintra. O Fado
Odivelas
Não foi malsã curiosidade, a de visitar o famigerado convento de Odivelas, a duas
léguas do centro de Lisboa, continuando o bairro do Lumiar, na estrada do
norte, por entre quintas garridas. Ali foi o rei Dinis I, que o levantou, em 1295, e onde meteu freira uma filha
bastarda, ali foi a enterrar-se. Ali esteve, com ele, a Rainha Santa Isabel,
que se iria a enterrar em Santa Clara… (Rei e Rainha combinaram em
juntar-se, finalmente! Para sempre, no Mosteiro de Alcobaça… Depois, o Rei
esqueceu, e dispôs, sozinho, a própria sepultura em Odivelas. A Rainha doeu-se
do abandono, e determinou, enciumada, ir repousar também só, na igreja da
Penha, do Castelo de Leiria, onde fez cavar túmulo. Mas mulher, embora santa, quando
elas não têm a quem contrariar, contrariam-se a si mesmas… contrariou-se,
enterrando-se em Coimbra…). Ali, em Odivelas, morreu Dona Felipa de Lencastre,
a mulher do rei João I, a mãe dos ínclitos
Infantes, que daí mandou os filhos a Ceuta, antes de finar-se, ao começar a
aventura peregrina de Portugal… Santa Joana, antes de Aveiro, aí experimentou a
clausura, São sagradas memórias, para sã curiosidade…
Mas a má fama se lhe ajuntou também. O rei Dinis não era casto, nem
cauto, pois que sujeito a murmurações. Se não tinha amores em convento, fez
recolhimento para a bastardia. O Povo havia de satirizar o nome de Odivelas,
por obra de outros soberanos:
- Onde ir vê-las... Vê-las, às Freirinhas de Odivelas.
Afonso VI houve aí amantes, das quais duas tiveram fama, Feliciana
de Milão, dotada de má língua e outros dotes, e Ana de Moura, a quem
prometeu fazer rainha e por quem se metia a tourear, no pátio do mosteiro. Mas
foi João V quem, a tudo, e a todos, excedeu. É exacto que ao tempo não era a Europa,
nem os grandes, nem os religiosos, por todo o mundo, muito diferentes… Como
haveria de sê-lo Odivelas, junto de Lisboa, num canto discreto, no século XVIII,
com João V? Lugar ímpio e escandaloso.
Hoje, tudo passou. Veio o terremoto de 1755 e o melhor foi-se, desabado, subvertido. Sic transit. Tudo é ruína, pobreza, vestígio do passado, no
couto pobre e no arruinado mosteiro real de Odivelas. O que resta, do sumptuoso
convento para 300 freiras e quantos serviçais? É apenas representado por acanhado
recolhimento de meninas, pupilas de um educandário, cuja inocência purifica
aqueles lugares… Passaram as freiras e suas ocupações, alcunhas de malícia,
intrigas galantes, doces delicados. Desses, tenho saudades… Tinham gosto, perfume
e nomes alegóricos:
- suspiros,
- raivas,
- esquecidos,
- tabefes,
- palha de abade,
- barriga de freira,
- toucinho do céu,
- fartens,
- doces de abóbora, de cidra, de marmelo, torrões rosados de açúcar… (no couto, ainda adquiri a saborosa marmelada de Odivelas…).
Com essa confeitaria, atraíam as freiras, a poetas e folgazões, aos
oiteiros, academias de letras, na cerca dos conventos… Tudo passou. Até doces e
oiteiros». In Afrânio Peixoto, Viagens na Minha Terra, Portugal, desenhos de
Alberto de Sousa, Livraria Lello & Irmão Editores, Porto, 1938.
Cortesia de L. Lello/JDACT