A Profecia. D. Teresa e o rei
Afonso Henriques
«Contudo, Geraldo morreu rodeado de frutos no Inverno e Henrique morreu
também, quatro anos depois, ao que se sabe, sem notícia de milagres. A
autonomia espiritual de Braga já não seria posta em causa; a relevância
política do condado, no entanto, ia começar a correr a perigo... Com a morte do
marido, Teresa passava a governar o condado
e, tratando-se de uma jovem viúva de 32 anos, teria outros homens. O problema
não estaria aí genericamente, mas nos homens que escolheu em particular: Bermudo
Trava, fidalgo galego, e, depois, Fernão Peres de Trava, irmão do
primeiro. Para os valores da época, isto de ser mulher de dois irmãos podia ser
classificado de incesto e não passava em claro sem julgamento moral. Mais do
que isso: Teresa não era uma viúva
qualquer era a condessa portucalense; ao escolher para companheiro um
fidalgo galego não era apenas uma mulher que se acercava dum homem, era o
condado que se aproximava de uma união com a Galiza.
Aparentemente pouco preocupada com o que em volta se pudesse pensar, Teresa vive maritalmente com Fernão
Peres de Trava e não se inibe de aparecer com ele em público. Não caía bem numa
mulher tão próxima da Igreja, amiga do arcebispo de Braga e que mantinha já
contactos com os Cavaleiros Templários, criados para proteger os cristãos na Terra
Santa e senhores da vanguarda militar da época, viver com um homem com quem não
era casada perante Deus. Na Sé de Viseu, o prior não deixaria passar impune o
escândalo: fazendo um duro sermão acerca daqueles que viviam mal casados, obriga a condessa humilhada a abandonar
a missa de braço dado com o amante, perante o olhar incrédulo de toda a
assembleia. A História não deixaria sem nome este prior destemido que ousou
afrontar a rainha: chama-se
Teotónio e, depois de duas viagens à Terra Santa, voltará para se tornar
a consciência moral de Afonso Henriques.
Lá chegaremos. Para já, importa-nos Afonso, então pouco mais do que uma criança perdida entre a morte
do pai, o novo casamento da mãe e um condado de que era herdeiro e que se
arriscava a perder. Enquanto Teresa
olhava para Norte, Afonso mirava o
Sul e a conquista de terras aos sarracenos. Fazia-se homem à pressa, alimentado
a ambição e revolta contra os desejos da mulher que o pusera no mundo, mas que,
segundo ele, desonrava agora, pelo coração e pelos projectos políticos, a memória
do pai. Aos poucos, o afastamento entre mãe e filho deixa de ser um assunto do
foro privado da família mais importante de Portucale,
torna-se querela pública e começa a traçar uma linha entre quem está com um ou
com outro. Outrora ao lado da condessa, o arcebispo de Braga escolhe agora
ficar ao lado do filho.
É presumivelmente com esse apoio de Paio Mendes que Afonso, ainda adolescente, se dirige à
catedral de Zamora, no Dia de Pentecostes do ano da graça de 1122. O que faria então não é gesto
único na História; outros reis, noutras partes e momentos do mundo, o fizeram e
é possível que tenha sido a notícia desses exemplos a inspirá-lo. Ainda assim,
o acto fala pelo carácter de Afonso:
- atravessa a igreja, sobe ao altar de São Salvador e retira de lá as armas. Uma a uma, toma-as para si. Veste a loriga, aperta o cinto, coloca o elmo, segura o escudo e ergue a espada. Não espera que venha alguém armá-lo cavaleiro - quem poderia vir? Arma-se a ele mesmo. A declaração de independência perfeita, não dum putativo reino, mas dum homem. Atestado de maioridade. Declaração de guerra. Contra a mãe.
A partir dali, a distância entre Teresa
e o filho não parará de aumentar. No condado e fora dele, todos sabem que têm planos
diferentes: boa parte da nobreza está com a condessa e com o projecto de uma
união com a Galiza. Outros aguardam cautelosamente, em silêncio, o desfecho do
conflito, para não correrem o desagradável risco de ficarem do lado errado,
isto é, contra o vencedor. Já os cavaleiros deserdados apoiam Afonso. São os segundos filhos, aqueles
a quem nada caberá por herança, os que nada têm a perder, os independentistas
por convicção ou acaso, a nobreza que recusa submeter-se ao domínio galego e o
sector mais progressista da Igreja que, em linha com a Abadia de Cluny ou a
Ordem de Cister começa ali a vislumbrar a oportunidade de fundar um reino
onde o poder temporal se submeta de raiz ao espiritual». In Alexandre Borges, Histórias
Secretas de Reis Portugueses, Casa das Letras, Lisboa, 2012, ISBN
978-972-46-2131-9.
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