Conferência proferida na
Biblioteca Museu República e Resistência.
«A primeira vez que o Directório
do Partido Republicano Português
assumiu a direcção política de um movimento revolucionário para depor a
monarquia, fê-lo marcando-o, primeiro para o dia 17 de Janeiro de 1908, data que acabaria por ser
empurrada para 28 do mesmo mês. Essa atitude marca uma mudança na prática
política do partido que sempre defendera a via eleitoral para a implantação da república. Mas a
vida política alterara-se profundamente nos últimos meses e a monarquia
golpeara-se no seu interior deixando ruir as suas instituições fundamentais. A Carta Constitucional de 1826:
- estava suspensa na maioria do seu articulado;
- o Parlamento estava encerrado por ordem do monarca desde Abril último, sem que tivessem sido marcadas novas eleições;
- o Governo exercia funções em ditadura;
- os principais partidos do regime, o regenerador e o progressista estavam afastados da área do poder;
- a liberdade de imprensa fora restringida pela legislação da ditadura e o rei dependia de João Franco.
O regime estava bloqueado e o Directório do Partido Republicano
sentia que podia dar corpo à alteração de regime para que apontavam os seus princípios,
a
república. A última vez que no seu seio se discutira a via de a
alcançar, fora no rescaldo do Ultimatum,
por volta de 1896, ou 1897, quando uma nova geração de
republicanos começa a despontar nos seus quadros de primeira linha. Uns, mais
impacientes propunham-se dinamizar formas organizativas semelhantes às dos carbonari que tinham triunfado
em Itália, durante o Risorgimento,
e garantido a independência e unificação do país, fundariam a Maçonaria Académica, ou Floresta que mais tarde assumiria
designação de Carbonária Portuguesa, feita para alcançar a república, sempre
sob a superior direcção do Partido. A maioria, contudo, acreditava que a razão
da sua causa acabaria por chegar à nação e ser reconhecida nas urnas, seria
a via eleitoral a fazer triunfar o projecto republicano.
Os anos seguintes, porém, viriam
defraudar as expectativas de ambos os grupos. O partido transformara-se num
partido de regime, disputava os actos eleitorais como um pequeno partido, que
tinha 4 deputados em 1892, apenas 2
em 1894, sem qualquer deputado em 1895 e 1897, voltava a eleger 3 deputados em 1899, mas já não elegeria nenhum em 1900, 1901, 1904 e 1905. Quanto aos que tinham enveredado pela
formação da Carbonária Portuguesa para a criação de milícias civis que
pudessem ser a base armada de uma revolução republicana, definhavam nas
sucessivas Altas Vendas, das
quais dependiam alguns carbonários sem grandes convicções de algum dia poderem
ser úteis à república.
Mas em 1906, dá-se um acontecimento que viria a ser decisivo no projecto
republicano. O Partido Republicano
lograra eleger 4 deputados nesse ano e, com a ajuda de alguns jornais
republicanos, como O Mundo de
França Borges e A Vanguarda
de Magalhães Lima, iriam dar uma maior dimensão aos casos postos em
relevo pelos seus deputados. E o maior de todos eles, aquele que rapidamente
viria a ter foros de escândalo nacional, foi a questão dos adiantamentos à Casa
Real.
O tema foi suscitado pelo
deputado da Dissidência Progressista António Centeno que
questionou João Franco sobre o montante dos créditos concedidos à Casa
Real, questão que obteve a sua confirmação, assim como também se confirmava que
essa prática, sendo ilegal, comprometia os governos anteriores e que os seus
responsáveis vinham, continuadamente, a omitir essa prática aos órgãos da
nação. Todavia, João Franco propunha-se sanear a situação existente com
a aprovação de novas regras na contabilidade pública, anexas ao Orçamento
para 1906-07, cuja aprovação pedia à Câmara.
Era um presente envenenado que
oferecia ao rei Carlos I e aos partidos Regenerador e Progressista que dele
e do seu novel Partido Liberal
ficariam reféns. Incomodados com as revelações, os deputados desses partidos
ficaram em silêncio e o próprio monarca que, por esses dias presidiu a uma
cerimónia na Sociedade de Geografia, quando confrontado com os
adiantamentos, afirmou que a sua dívida já tinha sido liquidada.
Restavam os deputados da
Dissidência Progressista que levantaram a questão e os deputados
republicanos que a exploraram, num debate longo e incisivo nas Cortes que se
prolongou nos jornais sob o signo de grande escândalo. À medida que se iam
conhecendo os pormenores do escândalo, as quantias envolvidas, as datas e a
cadência dos créditos, os nomes dos ministros e dos primeiros-ministros, os partidos,
os membros da família real que faziam uso dessas verbas, agigantava-se a
dimensão do escândalo de proporções nunca vistas nem imaginadas. Era verdade
que o rei mentira porque as suas dívidas continuavam por liquidar e, por entre
as palavras arrastadas que João Franco ia proferindo, parecendo medir
com prudência o valor de cada uma delas, numa intervenção feita em nome do mais
puro rigor na defesa mais intransigente das instituições monárquicas, era
visível o cinismo de uma intenção que significava, precisamente o contrário. De
um só golpe, lançava a lama mais abjecta sobre os partidos do regime,
desacreditava-os a ambos e ficava com o rei dependente da sua clemência. O regime iria ser ele».
In
Francisco Carromeu, Conferências na Biblioteca Museu República e Resistência, do 28 de Janeiro
de 1908 ao 5 de Outubro de 1910, Lisboa, 29 de Janeiro de 2008.
Cortesia do MR e Resistência/JDACT