quarta-feira, 13 de fevereiro de 2013

O Prior do Crato Contra Filipe II. Evocação Histórica. Mário Domingues. «Recordo-vos que tendo o meu rei Fernando outros filhos que D. Beatriz a casou com este rei João de Castela e que lhe jurastes obediência e vassalagem aos contratos»


Infante Luís, pai de Afonso I de Portugal
jdact

Da morte do cardeal-rei Henrique I à Invasão Castelhana
A Voz Dramática do “Velho Portugal”
«Escutemos, pois, o Velho Portugal. Receoso dos extremos em que me encontro, ou de outros piores, nos quais não quero incorrer, ouve, meu povo, estas recomendações:
  • 1ª De saber achar o caminho é o temor de Deus, sem ódio, afeição, nem interesse, e consequentemente governar mais por aquilo que a experiência tem mostrado e nos ensina que pelas razões temporais e aparentes;
  • 2ª Recordo-vos que não me tireis a quem pertenço por justiça, porque governar sem ela, embora alguma vez prevaleça, é sempre para maiores danos;
  • 3ª Recordo-vos zelo de união e conformidade, para se tratar do bem comum, porque assim fica mais garantido o bem particular de cada um;
  • 4ª Recordo-vos que fujais a parcialidades e facções cujos frutos são a guerra civil e a ruína geral de todos;
  • 5ª Recordo-vos que não haja neste tempo questiúnculas, paixões e promessas, pela recta estrada que se exige para chegar ao fim de Deus e a razão mostrar o que se deve pretender;
  • 6ª Recordo-vos que, se, por morte deste bom rei Henrique, ficar em termos de me poderdes dar com justiçam me mereça a quem me dareis;
  • 7ª Recordo-vos que Deus sabe tudo, e uma das maiores ameaças aos reinos que o ofendem, é que os passará a gente estrangeira;
  • 8ª Recordo-vos que, para me defender, não haja na mente impossibilidades ou medos porque, quando não tiverdes Deus contra vós, o poder dos homens depende mais dele que deles. Confiai na sua bondade e recordai-vos das vitórias passadas, havidas fora de toda a razão humana. E porque de Castela, como de reino mais vizinho, duvido com maior motivo, dar-vos-ei aquelas razões que tenho, pelas quais podereis agora melhor do que nunca defender-me;
  • 9ª Recordo-vos o tempo de meu rei Fernando, e peço-vos que queirais ver aquilo que dele se acha escrito e vereis quanto aviltados e pusilânimes andastes então, vencidos tantas vezes com Braga queimada, Lisboa destruída e penetrados de inimigos com tanto ultraje e ignomínia que chegaram os meus naturais a ponto que não podiam caminhar pelas minhas estradas sem salvo-conduto de gente estranha;
  • 10ª Recordo-vos que naquele tempo estava Castela cheia de armas, de capitães e gente valorosa, acostumados a vencer, exercitados pelo rei Henrique, Príncipe tão excelente e tão acostumado à guerra;
  • 11ª Recordo-vos que, por morte deste rei Henrique, ficou João, seu filho, rei pacífico dos reinos de Castela, Leão e Galiza, os quais de boa vontade obedeceram sem violência, cheios de gente com disse contra, que não tinha nem mãos nem olhos;
  • 12ª Recordo-vos que tendo o meu rei Fernando outros filhos que D. Beatriz a casou com este rei João de Castela e que lhe jurastes obediência e vassalagem aos contratos;
  • 13ª Recordo-vos que, por morte deste rei Fernando, querendo apoderar-se de mim e dos meus o rei João de Castela, seu genro, contra aquilo que se tinha pactuado, se rebelou o povo de Lisboa, tomando por seu governador e defensor João, Mestre de Avis, procurando conservar a liberdade, estando nós então tão pusilânimes que mais trabalho teve Nuno Álvares para vos fazer combater do que tivestes para vencer;
  • 14ª Recordo-vos que este seu povo, com o do Porto e o de Évora e outros bem poucos, tendo contra mim o maior número e os mais que queiram dar-me a Castela por causa das suas pretensões, coloridas por um juramento que haviam feito, Deus concedeu-me a graça de me ajudar, dando-me muitas vitórias que terminaram com a de Aljubarrota onde seis ou sete mil e tantos aviltados e mal armados vencestes com grande mortandade trinta mil e tantos dos nossos inimigos, entre os quais havia auxílios de França e a maior parte dos meus principais e a flor da nobreza de Castela, como disse, tão exercitada e valorosa;
Continua

In Mário Domingues, O Prior do Crato Contra Filipe II, Evocação Histórica, edição da L. Romano Torres, Lisboa, 1965.

Cortesia de Romano Torres/JDACT