«A história é escrita por homens e, apesar de estes pretenderem ser
imparciais e justos, ela reflecte as suas simpatias e aversões, as suas
qualidades e defeitos, sem que muitas vezes disso se apercebam, Cada cronista, cada
historiógrafo, cada narrador imprime no que escreve o cunho da sua
personalidade. Se assim não fosse, como poderíamos nós distinguir, por exemplo,
um Fernão Lopes de um Rui de Pina, quando nos relatam os mesmos acontecimentos
ou nos descrevem o mesmo vulto histórico? Mais modernamente, um facto contado
por Oliveira
Martins ou Lúcio de Azevedo difere totalmente da descrição pesada e
brônzea, saída da pena austera de Alexandre Herculano. Não diferem os
historiógrafos uns dos outros somente na forma, no estilo pessoal com que nos
relatam os mesmos sucessos, diferem até algumas vezes na maneira como surpreendem
a sua essência, que em cada um toma uma tonalidade diversa, consoante a sua
particular concepção da Vida. Deve-se, pois, esta variedade às diferenças de
temperamento e de mentalidade de cada autor.
Mas não são unicamente as qualidades e defeitos pessoais do escritor
que se projectam e gravam na história que sai da sua pena; são também, e esses
em certos aspectos muito mais importantes, os interesses, as conveniências da
época em que ele viveu, que formam um clima comum aos seus coevos; clima em
muitos casos tão denso, que ele não pode ou não tem coragem de alterar. Do
conhecimento das circunstâncias e do meio ambiente em que actuaram, resultou um
certo descrédito dos velhos cronistas que, durante séculos, se consideraram
fontes autorizadas e irrefutáveis para a reconstituição do passado remoto, como
se eles fossem deuses infalíveis, testemunhos respeitáveis, guias de inegável confiança.
Sempre que se duvidava de algum facto, vinham os padres-mestres, com
todo a peso da sua erudição, e citavam:
- Diz Azurara textualmente na sua Crónica da Guiné... Ou então: Conta-nos Rui de Pina na sua Crónica de D. Afonso V...
Em alguns casos, porém, a verdade é diferente do que nos contam os
cronistas, mesmo os de maior renome. Eles eram, afinal, tão falíveis como os
historiógrafos modernos; tal como estes, não foram testemunhas oculares da
maior parte dos acontecimentos que relataram; curaram por informações, por vezes
falsas ou deturpadas; nem sempre dispuseram de documentos que confirmassem os
factos de que tiveram notícia por tradição oral. Muito menos independentes do
que os historiadores dos nossos dias, evitaram mencionar episódios e pormenores
que eram os tabus do seu tempo, todas as épocas têm os seus tabus
e, por tendência religiosa, tinham propensão para acreditar no inverosímil, no
fabuloso, que registavam com alvoroço sem mais profundo exame, cegos para a
investigação serena das causas mais profundas que produziam os sucessos
espantosos, para os quais os seus escassos conhecimentos científicos não
encontravam fácil explicação.
Foi principalmente durante o século findo, para muitos, o
estúpido século XIX, que, afinal, nos libertou de tantas cadeias
mentais em todas as ciências, que os historiógrafos, apercebendo-se da humana
vulnerabilidade dos cronistas às mais variadas influências da sua época,
começaram a pôr em dúvida a fidelidade dos seus relatos e a procurarem
documentos e outras fontes que os confirmassem ou negassem. E então, algumas
intrigas principiaram a deslindar-se, certos mitos dissiparam-se, alguns vultos
que jaziam no olvido ressurgiram, falsos ídolos caíram do seu pedestal e em grande
número de casos outra face da história começou a revelar-se; aquela face que os
narradores de outrora nos quiseram sonegar ou que, pela pressão do meio
ambiente, ou dos poderosos senhores a quem serviam, habilmente desvirtuaram,
com o fim de persuadir os vindouros de que seus amos eram excelentes pessoas.
Hoje, por exemplo, toda a gente que se interessa um pouco por história,
sabe que Fernão Lopes, o
cronista português que em muitos aspectos se pode considerar superior do cronista
francês Froissard, não oferece inteira confiança. A sua obra é
verdadeiramente monumental, orgulho
das Letras medievas nacionais, mas, em numerosos passos, inquinada de
parcialidade. Escrevendo a soldo do rei Duarte I, não pôde furtar-se a lisonjear
a memória de João I de Portugal e de todos os que com este emparceiraram na Revolução
de 1383, ao mesmo tempo que reduziu a importância, que foi grande, do
reinado de Fernando I, comprazendo-se em insistir nos defeitos do Formoso e fazendo-se eco de
muitas calúnias anónimamente bolsadas contra sua mulher, a rainha D. Leonor Teles».
In Mário Domingues, O Regente Pedro, Príncipe Europeu, Empresa Nacional de
Publicidade, Colecção de História de Portugal, nº 7, Lisboa, 1964.
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