«Na década de sessenta, Portalegre era uma cidade
organizada, sustentada por uma indústria que garantia o trabalho, a fábrica dos
tapetes (tapeçarias de Portalegre onde começaram a trabalhar em exclusivo as
primeiras mulheres), a fábrica de lanifícios, a fábrica da rolha, a
Finicisa, empresas de construção, o Malcata, o Emílio Castro, que construiu um
grande edifício em frente ao mercado com um parque infantil original,
logo apelidado de Aldeia dos Macacos,
onde brincavam poucas ou nenhumas crianças pois ao ser de cimento,
partiam braços, cabeças e pernas com facilidade, um comércio activo, sem a
concorrência dos supermercados onde os comerciantes, gente séria que vendia
fiado, era avalista da luz eléctrica e do contador da água dos seus clientes, frente
à Hidro ou aos Serviços Municipalizados, e polícias, muitos e barrigudos os
conhecidos, de chapéu, gabardina e gravata os outros que adivinhávamos, que
auxiliavam essa organização.
Os dias corriam iguais e lentos, interrompidos de
vez em quando pela fuga de casa de um adolescente, um suicídio ou um par de cor…
Havia médicos que casavam com filhas de médicos, professores que casavam com
professoras, agricultores que casavam com filhas de outros agricultores,
enfermeiras que não podiam casar e operários que casavam com toda a gente
disponível depois da tropa cumprida. Médicos os Sampaios, com a Casa de Saúde
como catedral, agricultores um par deles, donos das terras e das casas
brasonadas ainda heranças feudais, professores, Nunes, Serrotes, Pestanas, Barrocas,
Cardosos, Castros, Salgados, Bacharéis, Fonsecas, Matos, Pratas, Martinós,
Matelas, Raimundos, Freires, Patés, Mouratos, Heitores, Patrões, Mouras,
Natálias, Quezadas, Moreiras e Martins... Alguns que passaram a raia da simples
escolástica, Régio, Tavares, Garcia de Castro, Pestana, vários apelidos que a
malta naquele tempo se reproduzia mais do que agora e os professores chegavam
todos os anos e ficavam. Hoje já não chegam tantos, os que há são da terra,
filhos e filhas da cidade antiga.
Havia bons e maus, como em todo o lado, mas os que
mais admirava eram os rompedores silenciosos dos tabus, das ordens e do sistema
rotineiro, mesmo que o empregado do Café Central lhes servisse o vinho da serra,
camuflado em chávenas de café.
Juntavam-se no Marchão, a tasca citadina de mais
êxito, pelos reservados que tinha depois de subir as escadas por trás do balcão.
O vinho do melhor e venerado, um dia pedi um traçado e quase me puseram na rua.
Tinha as melhores empadas, rissóis e pastéis de bacalhau do burgo e era o sítio
preferido dos intelectuais que desciam a Rua do Comércio com cara de pau,
gravata e lenço branco no bolso e aí se escondiam para rir, para despir o ar
sério necessário nesse tempo para se ser levado a sério, até porque depois de
uns copos e quando as aparências já não eram possíveis de se reconstituirem,
havia sempre a porta traseira do Marchão, aberta à rua que baixava da
Igreja de S. Lourenço e podia-se sempre dizer que se tinha acabado de vir da
missa, ou de se ter acabado de confessar ao padre Jorge, que com os adultos não
sei, mas com a catraiada, transformava o confessionário em inquisição erótica. Tens
maus pensamentos? Tocas no teu corpo? Brincas aos médicos com as
tuas primas? Qual delas? Sac… de padre.
Eu era um puto nesse tempo e frequentava a casa
porque era amigo do Quim, o filho do Marchão e acompanhei de perto muito dos
despires dos cinzentos, a que a cidade obrigava os seus mais ilustres. Conta-se
que um dia, esteve aí o João Tavares, com uma série de amantes dos pincéis que
tinham vindo à Fábrica dos Tapetes, para verem ser reproduzidas, a ponto, obras
suas e estava com eles, uma jovem e promissora pintora, que com o adiantar dos
risos e a desinibição do vinho, riscou a parede branca com vários rasgos a
preto, numa composição organizada no caos. Diz-se que quando saíram pela porta
de trás como era habitual, o Marchão chamou a mulher e disse-lhe:
- Cada vez estão piores, agora temos que ser nós a caiar esta m… Assim fez, cal por cima e parede limpa de novo. Soube-se mais tarde que o Marchão tinha acabado de borrar o maior chamariz para o seu negócio. A jovem promissora chamava-se Helena Vieira da Silva.
Mas continuemos com a cidade onde a deixámos. Enfermeiras,
não eram assim muitas, pois as freiras, normalmente espanholas, faziam-lhes
concorrência no profissional, não no número de afilhados. Os operários e
operárias eram a maior parte dos habitantes da cidade. Havia também pequenos
negócios, poros necessários à respiração de uma comunidade, por todos
conhecidos e que faziam parte da cidade como o Plátano ou a Fonte
do Rossio. Carnes e enchidos, o Vitalino, o Brito, o Zé Maria do
Talho... Os sapateiros, o Lagarto, o Adriano... Mercearias de bairro, o Camejo,
o Carichas, o Alegre... Tabernas, upa! Uma por rua. Ourives. O Cabecinha, o
Áreas, o Garção... Cabeleireiros, o Relvas monopolizava. Os alfaiates, o
Traguil, o Moutoso... Mais tarde o Parreira, mestre em vestir noivos já na
sacristia das igrejas». In Rui Aragonez Marques, Retratos de Gente
em Procissão, Tribuna Livre, capa de Raul Ladeira, Edições Colibri, Lisboa,
2012, ISBN 978-989-689-257-9.
Cortesia de Colibri/JDACT