segunda-feira, 25 de fevereiro de 2013

Vida ignorada de Leonor Teles. António Cândido Franco. «Quando veio a si, estava deitada numa liteira na entrada da capela da alcáçova. Uma linha de cavaleiros tomava-lhe guarda. Ela recordou a cena medonha da alameda, os quatro corpos caídos…»


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«O marido trocara-a por Leonor de Gusmão, a mãe de Henrique de Thastâmara, mas apostara nisso apenas a paixão do poder. Teve muitos filhos no tálamo dessa mancebia, mas mais seguros teve ainda os selos do reino. O gosto do mando é em certos homens tão transcendente como noutros o é a luz da beleza, a procura da sabedoria ou o aguilhão do amor. Por isso, o génio, confundindo-se falsamente com o exercício da política, acaba por ser incompatível com ele. No momento em que Pedro de Castela ouviu a mãe, teve um trejeito de ira. Os lábios brancos e finos convulsionaram-se. Esteve prestes a explodir, mas depois, escarninho e miúdo, riu-se e afastou-se a passo. - Cómo, seior, vos os vais? - Gritou escandalizada a rainha-mãe.
O rei já não ouvia ou fingia que não ouvia, que é a forma perfeita de estar atento e vingar um desdoiro. Dirigiu-se ao anadel-mor e segredou-lhe uma ordem. Uma escolta de besteiros rodeou de imediato a rainha num apertado círculo tão inacessível como o alto calabouço duma torre de vigia. Outra escolta imobilizou os ricos-homens que depois da arrancada da rainha se haviam quedado expectantes. Estavam lá os quatro validos mais chegados à rainha, Pedro Estebanez Carpentero, Ruy Gonzalez, de Castanheda, Afonso Giron e Martim Afonso Teles, que eram como as quatro comarcas do seu reino. Arreceava-se a rainha por eles como se temesse pela segurança das quatro paredes de sua casa.
Entretanto, com o quarto de terça em parte vencido, os homens-bons da cidade acorreram aos cimos da povoação. Eram daquela raça calada e dura que tanto dava pastores solitários e visionários como sineiros obtusos e desencantados. Após eles, vinham alguns servos miseráveis que não haviam represado a curiosidade, esse feitiço dos pobres. Fora de toca semelhavam animais de pêlo crespo, sem existência real nem verbo; ainda assim percebiam que haver por perto um rei de capeirão vermelho e uma rainha de preto valia o risco duma pisa. Davam até de bom grado a ponta do mindinho para poderem ver as cenas rijas daquele auto. - Posible es, hijo mío, que me cerráis el pérdon? - implorou a rainha de dentro da sua jaula humana.
O filho foi porém inexorável; ordenou a execução dos quatro homens. Enquanto o anadel cuidava de os isolar dos restantes, teve o rei espaço de bolçar as suas pragas. A praga é a espuma verbal da ira, aquela que melhor enche as dornas do coração com o mosto pestilento do veneno. Depois, terminante, rematou para a mãe. - Callad! Mostrar quiero mi rigor y justicia. Saciava o desespero da alma, como se estivesse para dormir ou para rebentar. Logo de seguida os besteiros estenderam no braço da besta o virote ervado e revolveram a polé, fazendo encurvar o arco para o tiro. A chuva regressara depois duma clareira de sol frio. O anadel olhou papa o rei, enquanto os quatro homens conscientes do que estava a correr sobre terra haviam ajoelhado e oravam de mãos postas, olhos cerrados e lábios ansiosos. Numa fracção de segundo as curtas setas despediram, ante o grito de horror da filha infeliz de Afonso IV.
Os quatro homens caíram crivados nas pedras da calçada. Perceberam-se então as convulsões dos corpos, ao mesmo tempo que se sentiam os rugidos abafados da dor. Um rumor de assombro correu pela pequena chusma de gente que espreitava de longe, retirada nas soleiras das portas. Depressa os homicidiados se imobilizaram; o sangue aos pequenos borbotos juntou-se à chuva, pintando de vermelho as cordas de água que corriam alameda abaixo, em direcção da praça principal da cidade. O vermelho é o tutano da vida e por isso a cor do crime.
Que é a vida senão um delito tão essencial como inexplicável?! E é por isso que esta história começa com um crime e há-de acabar com outro. Não há outro modo nesta vida de começar ou de acabar um conto. A rainha fechou os olhos. Sentia-se vazia e horrorizada. Alguém lhe havia mexido no peito, sufocando-lhe o pulsar do coração. Tombou então pesadamente sem acordo nas pedras da calçada. Quando veio a si, estava deitada numa liteira na entrada da capela da alcáçova. Uma linha de cavaleiros tomava-lhe guarda. Ela recordou a cena medonha da alameda, os quatro corpos caídos, contorcendo-se com o ferrão do veneno e abafando com o sufoco a gritaria da dor.
Entre eles, destacava-se o corpo de Martim Afonso Teles, o seu mais caro valido português, depois da morte do senhor de Albuquerque. Pertencia à família dos Teles de Meneses, uma velha família duriense de ricos-homens, que descendia por varonia de Fruela II, rei de Leão e Galiza, no século X. Um Afonso Teles de Meneses casara no século XII com uma filha natural de Sancho I de Portugal e Sancho IV de Castela, filho de Afonso X, o Sábio, apaixonara-se no século XIII por uma dona da família, Maria Afonso de Meneses, cuja proverbial beleza dera muito que falar. E dar que falar é sempre o modo de imprimir na memória colectiva um facto que se pensa extraordinário ou seminal. Desse tálamo nascera Violante Sanches que casara com Fernando Rodrigues de Castro, avós de Inês de Castro. O próprio senhor de Albuquerque, bastardo do rei trovador, casara com uma Teles de Meneses. A influência da família era tão larga dos dois lados da fronteira que o pai de Martim Afonso Teles, Afonso Martins Telo, fora mordomo-mor de Afonso IV.
Era pois com a atenção posta em Martim Afonso Teles que a rainha-mãe divagava. Voltara a cerrar os olhos e vinham-lhe ao pensamento os cabelos envencilhados do valido português, deitado de borco numa poça verdinhosa de água da calçada. Via-se-lhe o virote enterrado no cachaço como uma bandarilha de corrida ferrada em touro negro. À piedosa imagem misturava-se uma inquietação, a situação aflitiva em que a família do valido ficava com o infeliz desfecho da sua vida. A viúva, Aldonça Vasconcelos, estava moribunda e não sobreviveria decerto a tão terrível notícia. Havia depois quatro crianças, João Afonso, Maria, Gonçalo e Leonor, esta última ainda na primeira idade, que ficavam dum momento para o outro sem pai nem mãe. Regressou-lhe o vagado de há pouco. Recompôs-se e abriu lentamente os olhos. Luziam no silêncio as velas dos castiçais de prata da capela. Um grande Cristo pregado na cruz dobrava-se sobre si, vencido e miserável. A humidade brilhava nas pedras escuras das paredes toscas. Lá fora, a luz do dia debandava; a hora de noa há muito que chegara.
Ouviam-se já os sinos chamando às vésperas. A rainha tomou então uma decisão. - Marchad a preguntar a mi hijo se he yo de morir - demandou ela com intrepidez». In António Cândido Franco, Vida Ignorada de Leonor Teles, Edições Ésquilo, Lisboa, 2009, ISBN 978-989-8092-59-5.

Cortesia de Ésquilo/JDACT