I Fragmento
«Uma voz existe intersticial. Há trevas à tua volta e tu não és. Serás um dia. Por sobre este vazio orbe a luz pesa
milénios em sua ansiada ausência e à superfície dos rios invisíveis o presente
galopa arrepiadamente. Se fosses verias que sem ti o globo é cego minha desde
já assemelhada imagem. Fazes falta. O mundo não está ainda completado. Para ele
serás demasiado alto. A escuridão é aterradora fria sem fim é desolada assim sem
ti. Neste hoje do princípio dos séculos não farei mais nada. O futuro continuará
ao rés das águas que não são vogando. Amanhã daqui a muita espera quando a
claridade brotar já sobre a crosta da terra convulsiva criarei um firmamento
para o qual possas olhar constantemente sua altura aspirando e as fontes serão
vistas que eram por cima do firmamento do céu e pelo solo em volta
separá-las-ei com grave gesto. Nesses mares que durante séculos de séculos
tombarão da névoa imóvel te poderás lavar purificar-te conhecer a tua face. Depois
haverá cores e uma tarde virá e a manhã e tudo é bom. Logo ao seguinte dia o
húmus se tornará das ervas que dão semente e de árvores verdes com frutos. Se fosses
tinhas frutos e sementes para comer. Poderias sentir no ar o cheiro deles. Podias.
Mas não chegou a tua hora ainda.
Haverá dia e noite quando estrelas e luzeiros houver o grande e o
pequeno. Depois os animais. Pelas águas os peixes e répteis das águas começarão
de se mover e aves nascerão que voem sobre o espaço debaixo do claro da tarde.
Ruídos formas e volumes novos. Eis que é chegado o sexto dia há sonhos
aguardado o sexto dia. É dos selváticos e domésticos animais a vez e répteis
hão-de iniciar o seu tremendo rastejar na terra já semelhantes teus que
nascerás varão e fêmea para uma longa vida de tão breve. Não desesperes porém
porque serei contigo. Eu te abençoo debaixo deste sol te ordeno que cresças te multipliques
e as galáxias habites sujeitando-as. Contempla a natureza que boa ou má para ti
foi inventada e vive nela. Sê. Agora uns seculares instantes
vou descansar quase secreto. Mas eis que já formigas os homens passam
constantemente na rua. Já Lisboa se afogou no nevoeiro. Se tu ao menos um
sorriso visses descansavas. Não. Nada que não sejam portas e
janelas. Mudo entardecer. Discreto. Nas praças autocarros. Um banal
buzinar como balões a rebentar. Que pressa fornicadora em cada movimento. Imenso
foi o tempo. Pelos parques da cidade um vento se desata. Roxo seria o céu se
acaso fosse visto. Porém não é. Desiste. Antes repara na janela
defronte onde há bem pouco ainda aquela feminina fininha figura com um de comoestápassoubemmuitoobrigada
sorriso te sorriu. Não olhas. Aguardas e não chega. Teu quarto que teu não é
mas da cloaca citadina porque se aluga à hora está pesado de presenças passadas
espasmos idos móveis altos despidos cheios de pó. Mole é contudo a espera e tu
jazes no chão. Desejas com todo o corpo o que não sabes ainda. Dos automóveis o
volume rápido aumenta desde baixo. Deves pensar que o amor a amizade mesma se
tornou exigente. Exige doação. Assalta sem que contudo mate. vivifica. Por isso
te faz livre. Passos na escada vacilante enganam. Do quarto ao lado secas gargalhadas.
Não as repeles. São parte do cenário embora como estas pervertidas. É ela
ou não ainda? O soalho está pegajoso e sujo deve estar de pés e esperma
sobressaltadamente derramado. Manchas no tecto de humidade escura. Um espelho
sobre a cama espelha coitos futuros. Não olhes que te vês e terás medo de te
ver confuso. Nesta já noite de Novembro rolam automóveis e a chuva penetra um
pouco pela janela aberta. Descem passos na escada. Desatendes. Magoa-te as
costelas a dureza. Mesmo assim permaneces durante os dez minutos que deves ter
passado deitado dez minutos nem tanto apenas cinco e tu pensando que eram dez
talvez vinte minutos meia hora. É ela quem sobe firmemente é ela. Sem bater
entrou correu beijou-te a testa os olhos e a boca o lábio inferior dela no
superior da tua boca um instante de paz. Pôs-se de pé para se deitar de bruços
sobre a cama a sua face transversal à tua: hoje não posso problemas de fêmea. Auto-irónica
riu e tu sorriste: que chatice. Também o dia pouco consentia. Um no outro
sorriram: tive saudades tuas. Respondeu: e eu. E na verdade. não bem saudade mas
presença sobre a pele palpável». In Almeida Faria, Rumor Branco, Editorial
Caminho, 4ª edição, Lisboa, 1992, ISBN 972-21-0746-1.
Cortesia de Caminho/JDACT