Inexcedido
amor
Um Segredo da Polícia
«Defronte da Fundição de Baixo passava a trote um oficial
do exército, ainda muito moço. Em frente do Arsenal sofreara um pouco o seu
fogoso alter, todo axairelado de espuma e de lama, e correspondera à
continência de uma sentinela, garbosamente aprumado no selim. Depois meteu a trote
largo pelo caminho de Xabregas. Parou diante do portão brasonado de um velho
palácio solarengo, de largas varandas corridas, telhados acumiados, miranetes
altos a cada extremo da fachada. Era aquele o palacete de D. Matilde de Castro
Albuquerque, senhora de preclara linhagem, antiga dama de D. Maria I, a rainha louca. Viúva de um
tenente-general, havia poucos anos, D. Matilde ficara administrando a casa
opulenta que o marido lhe deixara, grande, principalmente, em bens vinculados
nos arredores de Lisboa, nos campos de Santarém e nas terras de Anadia e
Mortágua.
O cavaleiro que parou defronte do portão é o terceiro
filho de D. Matilde, o mais novo. Chama se Luís de Castro Albuquerque e é tenente do Regimento de Infantaria
nº 1, aquartelado em Belém, o antigo regimento de Lippe. Parecia que o moço
oficial era esperado, pois que, mal sopeou o cavalo, logo a porta se abriu e um
criado de cavalariça correu a segurar-lho. Entrou. Dobrou-se diante dele um
guarda-portão, velho de rija musculatura e aspecto marcial. Fora guardião da
armada. Encanecera e cansara-se nos mares. Tinha sido um valente das nossas
esquadras de cruzeiro no Estreito e na costa de Argel; andara com o almirante marquês
de Nisa nas campanhas do Mediterrâneo e acompanhara sempre um velho oficial de
marinha que vive naquele palacete e é irmão de D. Matilde.
- Adeus,
Tomás - disse-lhe afectuosamente o moço oficial - Sabes se a minha mãe
perguntou por mim? - Saberá V. S.ª que perguntou. - Meu irmão já veio? - Chegou
muito cedo. Esperam por V. S.ª para jantar. - Pois quê! Ainda não jantaram? Ora,
que disparate! E encaminhou-se pata a grande escadaria de balaústres de
mármore. Como se de súbito se houvesse lembrado de alguma coisa, o guarda-portão
foi atrás dele, muito afogueado. - Meu senhor, meu senhor! - Que é? - perguntou
já a meio do primeiro lanço da escada. - Queira V. S.ª perdoar. De todo me ia
esquecendo dizer-lhe que está ali no pátio grande, à sua espera, uma preta que
traz uma carta. - Para mim? - Para V. S.ª, e não quis que eu a recebesse.
Teimou que só a V. S.ª a havia de entregar. - Disse donde vinha? - Não, senhor;
não o quis dizer. - Vai lá chamá-la - mandou, um pouco perturbado - Será de
Maria? - perguntou de si para si, descendo. Tolice minha. Não mandaria cá, não me
escreveria senão por algum motivo de excepcional gravidade.
O Tomás voltou com uma negra, já idosa. Luís de
Castro conheceu-a 1ogo. Era uma criada de Maria
Pulaski, a filha de um joalheiro polaco, havia coisa de dois anos
estabelecido em Lisboa. Castro oprimiu-se de receio. Aquela negra era mais do
que uma simples criada, porque era a confidente de Maria e de Ana Beauchamp,
a dama de companhia da linda filha do
polaco. -Há coisa grave! - pensou, indo para a negra. A mulher segredou-lhe
umas palavras que o guarda-portão não podia ouvir, e entregou-lhe uma carta. Muito
comovido, Luís de Castro aperrou na mão, febrilmente, aquele pedaço de papel e
despediu a negra, dando-lhe recatadamente uma moeda de prata.
A serva foi para o portão, embiocou-se muito no
capuz redondo do seu capote encarnado, que só usava por disfarce, espreitou
para fora como se receasse algum encontro indiscreto, e meteu rapidamente pelo
caminho de Lisboa. Encostado ao balaústre de mármore, Luís de Castro abriu a
carta com nervosa impaciência. Leu-a num relance de olhos e fez-se pálido. Dobrou-a
apreensivo, guardou-a no peito da farda e subiu a escada lentamente. -
Suspeitas! Ameaças! - Ia dizendo consigo – Um plano de fuga... Não! A isso me
hei-de eu opor. Atravesso-me eu no caminho deles. Não deixarei que ma levem,
ainda que tenha de fazer uma loucura. Seja o que for! Em cima encontrou uma
criada. - Minha mãe? - Espera por V. S.ª na sala de jantar. - Vá dizer-lhe que
vou já». In António Campos Júnior, A Filha do Polaco, romance histórico,
Livraria Romano Torres, Lisboa, 1960.
Cortesia de Romano Torres/JDACT