«No Verão de 1447, em Julho,
Coimbra estava quente, os campos dourados da canícula, o rio pouca água
carregava. As crianças brincavam no areal e chapinhavam nas poças entre os
canaviais. O Regente Pedro recolhe-se ao seu paço, ao amor da família, ao
convívio dos seus amigos íntimos, ao conselho e companhia dos seus livros e
pensamentos. Certamente nem sequer suspeitou que pouco lhe festava de vida para
o tempo que desejava para si e os seus e a consumação do seu sonho político. Dois anos e meio, mais dia menos dia.
No seu ninho de águia, em Guimarães, o
irmão vigiava. Não sei se Pedro,
num momento de lazer, por entre os seus inúmeros afazeres que a administração
da sua casa exigia, terá relido Yvain Le Chevalier au Leon, de Chrétien
de Troyes, nalguma cópia que os monges franceses vendiam e, nos conventos
ingleses, os santos monges copiavam e também distribuíam, com os textos de Séneca,
Cícero, Platão ou Hipócrates, para os países como Portugal, Castela ou
Borgonha. Deve ter sorrido ao ler a descrição do unguento mágico que cura a
loucura e que a fada Morgana
inventou e que tanta falta faria ao
seu irmão Bragança, ou a estranha descrição do sangue que se liquefez
no corpo do homem assassinado quando dele se acercou o seu assassino... As
lendas das histórias da cavalaria seguiam o seu caminho como ainda hoje, em
alguns lugares... O seu cálice do destino iria, sob a serpe do seu nome,
encher-se do seu próprio sangue, mas isso não vinha escrito em lugar algum a
que ele pudesse ter acesso. Apenas se insculpia
a letras rasgadas à lâmina na alma dos seus inimigos cujo ódio foi como o fogo
que jamais se sacia.
A Morte do Cisne no Campo do Leão
Se Pedro encarnou durante
alguns momentos o mito do cisne, não foi santo, mas Afonso de Bragança, se foi a ave de rapina despeitada e
voraz que todos conheceram, também não foi apenas o ogre, a fada má, o homem
sem qualidades. Teve-as. Foi bom pai, marido devotado, extremoso avô, foi duro
e cruel nos seus castigos, mas também soube conceder-se a alegria da tolerância,
especialmente se isso pudesse pôr a recato os seus interesses. Isto não quer
dizer que nele campeassem apenas os defeitos... Foi virtuoso, à velha moda
antiga, chegava a manifestar bom coração para fiéis e servidores, mas o sangue bastardo do velho sapateiro
de Veiros aplacava-lhe a clemência, escurecia-lhe a visão,
endurecia-lhe a alma. Conheci muitos homens como ele, e, além do mais, não
perdoava qualquer cerceamento aos seus poderes, benefícios e garantias. Eu também sou filho de Rei!
Era-o mas preferia esquecer o sangue alentejano do Barbadão. Porque não? A quantos milhões e
milhões de homens isso aconteceu ao longo da História? Agora, ainda por cima,
estava velho, via o irmão governar, orientar o sobrinho e conhecia o seu pendor ao
fortalecimento do poder real em desfavor da velha nobreza territorial e
guerreira. E isso não perdoava, não queria, não podia perdoar! Era
saudável, apesar de muito velho, resistente e teimoso. Por isso resolveu-se a afastar o
irmão. Era suficientemente inteligente para compreender que bastava
estragar-lhe os planos, o esquema que laboriosamente, desde a juventude,
elaborara e continuava nele a perseverar. E fê-lo nesse mês de Julho de 1448, de longe, enquanto o irmão estava
em Coimbra, embora já em 1447
começasse a intriga a cercar o pobre e inofensivo Rei que, tal como a mãe, se
via permanentemente acossado.
Claro que o início da guerra, ou o seu reacender, aconteceu nas Cortes de Lisboa de 1446 em que um dos
grandes apoiantes do partido de Pedro,
o desembargador Diogo Afonso Mangancha, de joelhos, entregou a vara da
justiça ao Rei que a aceitou. Dias depois, coagido pelo tio, entregou-lhe de
novo o poder. Sucede que isto era o que os inimigos do Regente necessitavam para
preparar o cerco ao jovem e inexperiente Monarca. O conde de Ourém, o arcebispo de
Lisboa e o tio Afonso tomaram as rédeas do movimento. Nesse mês de
Julho Afonso prepara, acolitado
pelos tios e primo, um golpe de estado, pretendendo afastar a tutela do tio. O
que se seguiu foi o primeiro acto de Fartar,
Vilanagem!, da vida do ex-Regente.
O duque de Bragança que, entretanto, se transferira para Chaves, depois
de ter recebido notícias através do filho e do cunhado que tinham pressionado o
Rei a correr com o tio e sogro, reuniu os seus homens e desceu do Norte, do Marão,
do Minho, até Guimarães, depois de andar mais acima a arrebanhar a sua gente de
guerra, e veio até ao Porto». In Seomara Luzia da Veiga Ferreira, Crónica
Esquecida d’el rei João II, Editorial Presença, Lisboa 1995, 4ª edição, Lisboa
2002, ISBN 972-23-1942-6.
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