sexta-feira, 15 de março de 2013

Memória de Inês de Castro. António C. Franco. «Estavam nos claustros da Sé, em Lisboa, sobre uma varanda ampla, onde nos dias quentes a corte bebia água com limão e mel. Montavam toldos e olhavam as velas que atravessavam o rio para Almada»

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«O Alentejo, sobretudo na parte Oriental, aparecia, depois desta ronda, como devastado, cheio de ruínas e de cadáveres, e o rei de Castela tinha-se retirado apenas por razões de foro íntimo. Leonor de Gusmão esperava-o em Sevilha. Foi por essa altura que o rei chamou o infante Pedro a Lisboa. As naus de Manuel Pessanha acabavam de descer das costas galegas, onde tinham incendiado alguns portos e feito alguns prisioneiros. Preparavam-se agora para saquear Sevilha, a Lisboa castelhana, passando pela costa algarvia e subindo de imprevisto o Guadalquivir, que pode perfeitamente ser visto como um outro Tejo. Estávamos em Maio e o Minho acabava de se livrar de outra invasão castelhana. Apodreciam cadáveres de homens e de animais entre os rebentos do centeio e viam-se corpos enforcados nas latadas de pedra das quintas. Corriam névoas e havia crianças perdidas na estrada de Braga com os lábios rebentados de fome. Tinham-se separado dos pais no temporal dos saques e tinham visto arder, em poucos segundos, o telhado de colmo das suas casas. A situação estava cada vez mais indecisa e o rei português tinha decidido reforçar as acções, aplicando todos os seus homens nas próximas operações militares. Mandou chamar o infante, que estava com dezasseis anos, e disse-lhe:
  •  - Aragão mantém esforços contra o adiantado de Múrcia e João Manuel, agora duque de Vilhena, entrou já, por mais duma vez, nos campos de Albacete. Vamos carregar em Sevilha e olhar a Andaluzia da Giralda. Preciso que tu acudas a todo este reboliço e que temperes o braço no ferro.
Estavam nos claustros da Sé, em Lisboa, sobre uma varanda ampla, onde nos dias quentes a corte bebia água com limão e mel. Montavam toldos e olhavam as velas que atravessavam o rio para Almada. O infante estava sentado e olhava perdidamente a extensão azul duma água que tinha mais de mar do que de rio. Subiam marés e desciam marés, rolavam ondas nos areais de Alcochete, boiavam nas águas salgadas cadáveres de gaivotas e de flamingos. O infante usava uma blusa de linho branco e tinha à cintura um punhal fino de prata enfiado num pequeno estojo de carneira. Parecia-lhe inconcebível que a Hespanha se agitasse tanto com o seu casamento». In António Cândido Franco, Memória de Inês de Castro, Publicações Europa-América, 1990.

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