Com a amizade da LC e a memória do amigo APCM
(Continuação)
«A escuridão era completa, apenas
a espaço rasgava o negrume o fraco lampejo das luzes da lorcha e do Poyang.
À 1 hora (a. m.), aproveitando um recalmão, largou-se para o fundo o ferro de EB,
arriou-se até ao chicote o fiel da cabresteira. Os escaleres quebravam-se nos
turcos, que dobravam com o peso da rajada, e a canoa de barlavento, suspensa
das talhas, oscilava dentro do navio. Nada mais ocorria de notável, o temporal
parecia no seu auge, mas o barómetro continuava a baixar e às 2.50 horas (a.
m.) o aneróide marcava 0,720 mm (960 mb), limite da escala. A esta hora, já não
se viam as luzes do cidade e dos navios, a máquina trabalhava com toda a força a vante, a coluna de ar deslocada
com incrível velocidade, silvava no massame
de arame da escuna.
Era impossível dor ordens, que
ninguém ouvia, arrastadas e confundidas as vibrações sonoras do ingente turbilhão.
Pouco depois das 3 horas (a. m.) caiu de través sobre a proa da Camões
a lorcha Amazona. Era impossível evitá-la, a canhoneira não obedecia ao
leme. O choque foi grande e a proa da escuna batia como ariete em fortíssimos embates
o costado da velha lorcha da Polícia. A seu bordo aquartelavam-se talvez uma
centena de pessoas que se perderiam sem remédio no caso de a lorcha soçobrar.
Mandou-se parar a máquina. Então a Camões aproava ao SW atravessada à vaga e a Amazona
ao NE filando ao vento.
Passado algum tempo duas
embarcações chinas abordaram por EB a Amazona e juntas com ela, trazidas
pelo vento e pelo mar embravecido, ondeando em amplos balanços, arremeteram com
a proa da escuna e num choque tremendo arrebentaram-lhe o fiel da amarração.
Largou-se para o fundo o ferro de BB, perdendo-se logo de vista os terríveis
agressores. A rastejar pela popa passava um vulto enorme. Era o White
Cloud. Rebentados os viradores dados para a ponte, lá ia impelido pela tormenta
de Deus e à aventura.
Salva estava a Camões
daquela terrível abordagem, quando uma grande lorcha de carga assentou
o alteroso castelo de popa dentro do navio e correndo de vante para ré arrombou a amurada de BB, rebentou as enxárcias do traquete e grande,
as plumas da chaminé e esmagou a canoa sobre a gaiuta da cozinha. Um grosso pranchão de carga, que trazia
saliente do costado, varria como foice roçadora a tolda da escuna. A chaminé inclinava
lentamente a sotavento, prestes a desabar. Era urgente retirar o fogo para o
incêndio não vir juntar seus danos aos imensos perigos do tufão. De rastos,
magoado por uma pancada do madeiro, que o colhera pelo peito, o comandante
conseguiu alcançar a escotilha do máquina e bradar para baixo a ordem salvadora,
que foi cumprida a tempo, tombando logo em seguida a chaminé.
Era indescritível a violência do vendaval. A bordo a escuridão
era medonha. O vento apagara todas as luzes, as agulhas saltaram fora dos
fulcros por causa dos balanços desmedidos, o mar desencontrado cobria a tolda, passando de um a outro bordo
como uma abóboda de água lamacenta, e o vento rugia como o estrondo de descargas
de artilharia, ameaçando arrancar a gente que com valor sobre-humano cavalgara
a borda, para talingar o ferro
da roça, a última âncora de socorro. Não há palavras para descrever aqueles momentos
de angústia (...)» In Pedro Fragoso Matos, O Maior Tufão de Macau, Separata dos Anais do
Clube Militar Naval, Lisboa, 1985.
continua
Cortesia de António Pedro (†)
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