segunda-feira, 4 de março de 2013

O Vaticano contra Cristo. Religiões. Tradução de José A. Neto. I Millenari. «Recusando qualquer intenção panfletária, os autores afirmam ter escrito o livro com o único objectivo de interrogar, a partir de dentro, a Igreja e o actual sistema da Cúria Romana. A obra foi pensada como um ‘acto de amor à Igreja de Jesus’»


jdact e cortesia de wikipedia

Introdução à edição portuguesa
«Jesus, que viveu no horizonte da apocalíptica e, portanto, na expectativa da irrupção plena iminente do Reino de Deus, já presente na sua pessoa, nas suas palavras e acções, onde nenhum homem dominaria sobre outro homem, Reino sem malvadez, sem exploração, sem doença nem morte, na abundância de bens, de fraternidade, de generosidade, de realização adequada de todas as esperanças, de alegria toda, não fundou propriamente uma Igreja nem, por isso mesmo, pensou em dar-lhe uma determinada constituição. Com a crucifixão de Jesus, tudo terminava em fiasco e aparentemente foi o fim. Os discípulos abandonaram-no e fugiram, de tal modo que, mesmo do ponto de vista do historiador, o enigma do cristianismo consiste em explicar como é que Jesus, que morreu como blasfemo e maldito, amaldiçoado seja todo aquele que pende do madeiro, lê-se na Bíblia, vai, pouco tempo depois da sua morte, ser anunciado como o Filho de Deus e a própria Boa Nova de Deus para todos os homens. O fundamento desta viragem é a fé pascal.
Os discípulos fundamentavam o seu anúncio de que o crucificado como criminoso e maldito estava vivo numa experiência de encontro real com Jesus ressuscitado. Esta experiência é uma experiência de fé, para a qual será sempre difícil encontrar palavras adequadas, disseram que o tinham visto, que ele lhes tinha aparecido. Essa experiência foi, porém, de tal modo avassaladora que transformou radicalmente as suas vidas e estiveram dispostos a testemunhá-la até ao martírio. As primeiras comunidades cristãs eram verdadeiras comunidades fraternas, sem hierarquias, partilhando inclusivamente os bens materiais. Os cristãos viviam de tal modo da convicção da iminência do regresso de Cristo na sua glória, a segunda vinda de Cristo, e da instauração plena do Reino de Deus que pensavam não vir a ser atingidos pela morte. Foi com o atraso da chegada de Cristo que foi preciso reflectir sobre o entretanto, incluindo a necessidade de um mínimo de organização das comunidades. Para isso, serviram-se de modelos organizativos disponíveis, e a história explica como se chegou a uma instituição piramidal e rigidamente hierarquizada na Igreja.
Isto significa que, tendo sido a Igreja que deu a si mesma a presente organização constitucional, hierarquizada e centralizada, também pode modificá-la, como mostrou o exegeta Herbert Haag, da Universidade de Tirbinga, e deverá fazê-lo num sentido democratizante. A quem argumentar que a Igreja não é uma democracia, pois isso significaria politizá-la, deverá responder-se que Jesus queria ainda mais do que uma democracia, pois o que estava no seu horizonte era a filadélfia, comunidade de comunidades de irmãos e amigos. Por isso, também na Igreja deve valer o que se tornou claro para a sociedade em geral: toda a autoridade vem de Deus, mas através do povo.
O que pertence a todos deve ser decidido por todos. Há, portanto, perguntas que voltam sempre de novo: Porque é que a Igreja católica é a última grande instituição do Ocidente por onde não passou ainda a Revolução Francesa, portanto, sem real divisão de poderes e com uma monarquia absoluta? É admissível que a vida religiosa de mil milhões de pessoas continue na dependência de um só homem, o Papa? Como é que a Igreja, Povo de Deus enquanto comunidade daqueles e daquelas que têm como determinante da sua vida Jesus, o Crucificado, que o foi por blasfémia e subversão político-religiosa, e o Vivente ressuscitado, é compatível com a Igreja, sistema de poder centralizado, com o seu quartel-general no Estado do Vaticano, onde, por princípio, não vivem mulheres e, portanto, onde também não há crianças, pois os hierarcas devem ser celibatários do sexo masculino? Um Estado minúsculo do ponto de vista geográfico, mas com influência mundial, onde não vivem mulheres nem crianças!
O Vaticano contra Cristo é o título da tradução portuguesa de Via col vento in Vaticano, um best-seller entretanto já traduzido também para outras línguas. A sua autoria pertence a um conjunto de monsenhores ao serviço da Igreja na Cúria Romana, que assinam sob o pseudónimo I Millenari. Se só o nome de mons. Luigi Marinelli, que ao longo de mais de três décadas trabalhou na Congregação para as Igrejas orientais, veio a público, é porque, já jubilado, mais facilmente poderia resistir às sanções eclesiásticas. A sua intenção não é panfletária. Pelo contrário, se ousam, em nome do Evangelho, denunciar o carreirismo, o tráfico de influências, os jogos e conluios de poder, os comportamentos dúbios e escandalosos, as mentiras, a promoção de incompetentes servis, os privilégios da casta clerical no topo da hierarquia eclesiástica, é para que a Igreja entre no novo milénio mais próxima do projecto de Jesus. Aliás, o seu testemunho é tanto mais relevante quanto a sua teologia é conservadora e até, uma ou outra vez, ingénua.
Como disse Hans Küng, no dia 2l de Janeiro de 2000, por ocasião da entrega a Luigi Marinelli do Prémio Liberdade na Igreja, da Fundação Herbert Haag, esta obra é importante, não porque nela se contam determinadas histórias escandalosas da Cúria Romana, mas porque, a partir de dentro, o actual sistema católico romano de Igreja, clerical e absoluto, que se desenvolveu sobretudo a partir da chamada Reforma gregoriana no século XI, é interrogado sobre se está realmente de acordo com o Evangelho ou se o contradiz, se corresponde ou não às palavras e intenções de Jesus, do qual permanentemente se reclama. O célebre teólogo de Tubinga acrescentou: A Igreja de Cristo não pode ser uma Igreja do poder e do domínio, da burocracia e da discriminação, da repressão e da inquisição. Para estar de acordo com o Evangelho, tem de ser a Igreja do amor cordial aos homens e mulheres, do diálogo, da fraternidade, da hospitalidade também para os não conformistas, do serviço e da solidariedade, que não exclui as forças e ideias novas, mas as faz frutificar. 


É necessário opor-se a uma Igreja da imobilidade dogmática, da censura moralista, urna Igreja da omnisciência e do medo. A Igreja só pode reclamar-se de Jesus, se for a Igreja de uma notícia boa e feliz, da alegria, de uma teologia orientada pelo Evangelho, que ouve os homens e as mulheres, em vez de indoutriná-los a partir de cima, uma Igreja que ensina e ao mesmo tempo está permanentemente disposta a ser ensinada e a aprender, uma Igreja sincera e activamente interessada nos problemas da humanidade e de humanidade». Anselmo Borges, In I Millenari, Via col vento in Vaticano, Kaos Edizioni, 1999, O Vaticano contra Cristo, tradução de José A. Neto, Religiões, Casa das Letras, 2005, ISBN 972-46-1170-1.

Cortesia Casa das Letras/JDACT