Introdução
à edição portuguesa
«Jesus, que viveu no horizonte da apocalíptica e, portanto,
na expectativa da irrupção plena iminente do Reino de Deus, já presente na sua pessoa,
nas suas palavras e acções, onde nenhum homem dominaria sobre outro homem, Reino
sem malvadez, sem exploração, sem doença nem morte, na abundância de bens, de
fraternidade, de generosidade, de realização adequada de todas as esperanças,
de alegria toda, não fundou propriamente uma Igreja nem, por isso mesmo, pensou
em dar-lhe uma determinada constituição. Com a crucifixão de Jesus, tudo
terminava em fiasco e aparentemente foi o fim. Os discípulos abandonaram-no e
fugiram, de tal modo que, mesmo do ponto de vista do historiador, o enigma do cristianismo consiste em
explicar como é que Jesus, que morreu como blasfemo e maldito, amaldiçoado seja todo aquele que pende do
madeiro, lê-se na Bíblia, vai, pouco tempo depois da sua morte, ser
anunciado como o Filho de Deus e a própria Boa Nova de Deus para todos os
homens. O fundamento desta viragem é a fé pascal.
Os discípulos fundamentavam o seu anúncio de que o
crucificado como criminoso e maldito estava vivo numa experiência de encontro
real com Jesus ressuscitado. Esta experiência é uma experiência de fé, para a
qual será sempre difícil encontrar palavras adequadas, disseram que o tinham visto, que ele lhes tinha aparecido. Essa experiência foi, porém,
de tal modo avassaladora que transformou radicalmente as suas vidas e estiveram dispostos a testemunhá-la até
ao martírio. As primeiras comunidades cristãs eram verdadeiras comunidades
fraternas, sem hierarquias, partilhando inclusivamente os bens materiais. Os
cristãos viviam de tal modo da convicção da iminência do regresso de Cristo na
sua glória, a segunda vinda de Cristo, e da instauração plena do Reino de Deus
que pensavam não vir a ser atingidos pela morte. Foi com o atraso da chegada de
Cristo que foi preciso reflectir sobre o entretanto,
incluindo a necessidade de um mínimo de organização das comunidades. Para isso,
serviram-se de modelos organizativos disponíveis, e a história explica como se
chegou a uma instituição piramidal e rigidamente hierarquizada na Igreja.
Isto significa que, tendo sido a Igreja que deu a
si mesma a presente organização constitucional, hierarquizada e centralizada,
também pode modificá-la, como mostrou o exegeta Herbert Haag, da
Universidade de Tirbinga, e deverá fazê-lo num sentido democratizante. A quem
argumentar que a Igreja não é uma
democracia, pois isso significaria politizá-la, deverá responder-se que
Jesus queria ainda mais do que uma democracia, pois o que estava no seu horizonte
era a filadélfia, comunidade de
comunidades de irmãos e amigos. Por isso, também na Igreja deve valer o que se
tornou claro para a sociedade em geral: toda
a autoridade vem de Deus, mas através do povo.
O que pertence a todos deve ser decidido por todos.
Há, portanto, perguntas que voltam sempre de novo: Porque é que a Igreja
católica é a última grande instituição do Ocidente por onde não passou ainda a
Revolução Francesa, portanto, sem real divisão de poderes e com uma monarquia
absoluta? É admissível que a vida religiosa de mil milhões de pessoas continue
na dependência de um só homem, o Papa? Como é que a Igreja, Povo de Deus enquanto
comunidade daqueles e daquelas que têm como determinante da sua vida Jesus, o Crucificado, que o foi por
blasfémia e subversão político-religiosa, e o Vivente ressuscitado, é compatível com a Igreja, sistema de poder centralizado,
com o seu quartel-general no Estado do Vaticano, onde, por princípio, não vivem
mulheres e, portanto, onde também não há crianças, pois os hierarcas devem ser
celibatários do sexo masculino? Um Estado minúsculo do ponto de vista
geográfico, mas com influência mundial, onde não vivem mulheres nem crianças!
O Vaticano contra Cristo é o título
da tradução portuguesa de Via col vento in Vaticano, um best-seller entretanto já
traduzido também para outras línguas. A sua autoria pertence a um conjunto de monsenhores
ao serviço da Igreja na Cúria Romana, que assinam sob o pseudónimo I Millenari. Se só o nome de mons.
Luigi Marinelli, que ao longo de mais de três décadas trabalhou na Congregação
para as Igrejas orientais, veio a público, é porque, já jubilado, mais
facilmente poderia resistir às sanções eclesiásticas. A sua intenção não é
panfletária. Pelo contrário, se ousam, em nome do Evangelho, denunciar o
carreirismo, o tráfico de influências, os jogos e conluios de poder, os
comportamentos dúbios e escandalosos, as mentiras, a promoção de incompetentes
servis, os privilégios da casta clerical no topo da hierarquia eclesiástica, é
para que a Igreja entre no novo milénio mais próxima do projecto de Jesus.
Aliás, o seu testemunho é tanto mais relevante quanto a sua teologia é
conservadora e até, uma ou outra vez, ingénua.
Como disse Hans Küng, no dia 2l de Janeiro
de 2000, por ocasião da entrega a Luigi Marinelli do Prémio Liberdade na Igreja, da Fundação
Herbert Haag, esta obra é importante, não porque nela se contam determinadas
histórias escandalosas da Cúria Romana, mas porque, a partir de dentro, o
actual sistema católico romano de Igreja, clerical e absoluto, que se
desenvolveu sobretudo a partir da chamada Reforma gregoriana no século XI, é
interrogado sobre se está realmente de acordo com o Evangelho ou se o contradiz,
se corresponde ou não às palavras e intenções de Jesus, do qual permanentemente
se reclama. O célebre teólogo de Tubinga acrescentou: A Igreja de Cristo não
pode ser uma Igreja do poder e do domínio, da burocracia e da discriminação, da
repressão e da inquisição. Para estar de acordo com o Evangelho, tem de
ser a Igreja do amor cordial aos homens e mulheres, do diálogo, da
fraternidade, da hospitalidade também
para os não conformistas, do serviço e da solidariedade, que não exclui as
forças e ideias novas, mas as faz frutificar.
É necessário opor-se a uma Igreja da imobilidade dogmática, da
censura moralista, urna Igreja da omnisciência e do medo. A Igreja só pode
reclamar-se de Jesus, se for a Igreja de uma notícia boa e feliz, da alegria,
de uma teologia orientada pelo Evangelho, que ouve os homens e as mulheres, em
vez de indoutriná-los a partir de cima, uma Igreja que ensina e ao
mesmo tempo está permanentemente disposta a ser ensinada e a aprender, uma Igreja
sincera e activamente interessada nos problemas da humanidade e de humanidade».
Anselmo
Borges, In I Millenari, Via col vento in Vaticano, Kaos Edizioni, 1999, O
Vaticano contra Cristo, tradução de José A. Neto, Religiões, Casa das Letras,
2005, ISBN 972-46-1170-1.
Cortesia Casa das Letras/JDACT