domingo, 3 de março de 2013

Religiões. O Vaticano contra Cristo. Tradução de José A. Neto. I Millenari. «Foi escrito por um conjunto de vinte prelados ao serviço da Igreja no Vaticano, que assina com o pseudónimo ‘I Millenari’. Só, de facto, o nome de monsenhor Marinelli foi identificado porque, já jubilado, mais facilmente poderia resistir a eventuais sanções eclesiásticas»

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Introdução à edição portuguesa
«No dia 12 de Março de 2000, na Basílica de São Pedro, o papa João Paulo II, numa atitude sem precedentes tanto no catolicismo como na própria história das religiões, pediu, no sentido da purificação da memória, perdão pelos erros, violências e pecados cometidos pela Igreja católica, concretamente durante o segundo milénio do cristianismo, ao mesmo tempo que perdoou todas as perseguições de que foi vítima também a Igreja. Aliás, o papa, por várias vezes e em diversos lugares, já se tinha referido a múltiplos temas que exigiam a penitência católica: Cruzadas, Islão, divisão entre Igrejas cristãs, mulheres, judeus, Inquisição (maldita), Galileu, guerras religiosas, Hus, Lutero, Calvino, Zuínglio, tráfico de negros, conversões forçadas dos povos, racismo, violência na propagação da fé, injustiças contra os adeptos de outras religiões e outros grupos sociais mais fracos, ateísmo, os direitos de todos os seres humanos.
Não basta, porém, pedir perdão pelo passado, pois há ainda os males do presente, e o perdão exige propósito de emenda na actualidade e para o futuro. Assim, impõe-se a reconciliação com bispos e teólogos ainda penalizados, o respeito pelos direitos humanos também no interior da Igreja, nomeadamente a liberdade de investigação, de opinião e de expressão, se a fé está constitutivamente referida a Deus, que é infinito, não será tarefa da teologia colocar permanentemente perguntas, questionar ilimitadamente? O reconhecimento da igualdade das mulheres, colocar no centro das preocupações da Igreja as reais aspirações da humanidade pelo sentido da vida e pela procura do Deus vivo e não as fórmulas dogmáticas ou o direito canónico, o anúncio do Deus que liberta e não do deus que humilha e oprime, a compreensão para com os católicos divorciados e que voltaram e casar, a reconsideração do celibato, que, enquanto lei, é contra o Evangelho, bem como da confissão, que, €em vez de ser o espaço do perdão misericordioso de Deus, tem sido, muitas vezes, na sua prática concreta, o lugar da violência inquisitorial do mais íntimo das pessoas, com o risco de violação dos direitos humanos...
Quando se pensa na queima das bruxas, nas vítimas do fogo da Inquisição (maldita), na tortura psicológica causada pelo pânico do inferno, na vida envenenada pelos traumas sexuais, no desmoronamento da identidade própria provocado pela imposição violenta da conversão, na menoridade mental causada por pregações tonitruantes com ideias mesquinhas acerca de Deus, quando se pensa em toda a crueldade legitimada religiosamente, entende-se que para um número incalculável de pessoas teria sido preferível não ter tido contacto com a religião e concretamente com o cristianismo histórico que lhes foi apresentado ou imposto.
No entanto, é inegável que no cômputo geral o saldo é incomparavelmente superior a favor do cristianismo, que foi na história da humanidade a maior fonte de esperança para a vida e na morte. É reconhecido até por não crentes que a consciência da dignidade infinita de ser homem, que já não pode ser considerado como gado, assim se expressou o ateu Ernst Bloch, e da democracia, da justiça social e da inviolabilidade dos direitos humanos, que são divinos, não é desvinculável do cristianismo. Ainda recentemente Umberto Eco, que se confessa laico, escrevia em carta aberta ao cardeal Martini, de Milão, que, se fosse um viajante proveniente de galáxias longínquas, ao encontrar-se frente a uma humanidade que soube propor-se o modelo de Cristo, com o amor universal, o perdão dos inimigos, a vida oferecida em holocausto pela salvação dos outros, consideraria esta espécie miserável e infame, que cometeu tantos horrores, redimida pelo simples facto de ter conseguido desejar e crer que tudo isto é a Verdade.
O facto de historicamente a democracia e os direitos humanos, cujas raízes também são bíblicas, terem tido de impor-se frequentemente contra a Igreja institucional dá que pensar. E conhecida a afirmação de Alfred Loisy, em O Evangelho e a Igreja, 1902, talvez a obra de teologia que mais polémica levantou no nosso século: Jesus anunciou o Reino, e o que veio foi a Igreja. Deste modo, o famoso teólogo modernista católico exprimia, por um lado, uma certa decepção, pois a Igreja não se identifica com o Reino de Deus, por outro, queria dizer que a Igreja é uma forma histórica do Reino de Deus que vem, e está ao seu serviço». Anselmo Borges, In I Millenari, Via col vento in Vaticano, Kaos Edizioni, 1999, O Vaticano contra Cristo, tradução de José A. Neto, Religiões, Casa das Letras, 2005, ISBN 972-46-1170-1.

Cortesia Casa das Letras/JDACT