Introdução
à edição portuguesa
«No dia 12 de Março de 2000, na Basílica de São
Pedro, o papa João Paulo II, numa atitude sem precedentes tanto no catolicismo
como na própria história das religiões, pediu, no sentido da purificação da memória, perdão
pelos erros, violências e pecados cometidos pela Igreja católica, concretamente
durante o segundo milénio do cristianismo, ao mesmo tempo que perdoou todas as
perseguições de que foi vítima também a Igreja. Aliás, o papa, por várias vezes
e em diversos lugares, já se tinha referido a múltiplos temas que exigiam a
penitência católica: Cruzadas, Islão, divisão entre Igrejas cristãs, mulheres,
judeus, Inquisição (maldita), Galileu, guerras religiosas, Hus, Lutero, Calvino, Zuínglio, tráfico
de negros, conversões forçadas dos povos, racismo, violência na propagação da
fé, injustiças contra os adeptos de outras religiões e outros grupos sociais
mais fracos, ateísmo, os direitos de todos os seres humanos.
Não basta, porém, pedir perdão pelo passado, pois
há ainda os males do presente, e o perdão exige propósito de emenda na
actualidade e para o futuro. Assim, impõe-se a reconciliação com bispos e
teólogos ainda penalizados, o respeito pelos direitos humanos também no interior
da Igreja, nomeadamente a liberdade de investigação, de opinião e de
expressão, se a fé está constitutivamente referida a Deus, que é
infinito, não será tarefa da teologia colocar permanentemente perguntas,
questionar ilimitadamente? O reconhecimento da igualdade das mulheres,
colocar no centro das preocupações da Igreja as reais aspirações da humanidade
pelo sentido da vida e pela procura do Deus vivo e não as fórmulas dogmáticas
ou o direito canónico, o anúncio do Deus que liberta e não do deus que humilha
e oprime, a compreensão para com os católicos divorciados e que voltaram e
casar, a reconsideração do celibato, que, enquanto lei, é contra o Evangelho,
bem como da confissão, que, em vez de ser o espaço do perdão misericordioso de
Deus, tem sido, muitas vezes, na sua prática concreta, o lugar da violência
inquisitorial do mais íntimo das pessoas, com o risco de violação dos direitos
humanos...
Quando se pensa na queima das bruxas, nas vítimas
do fogo da Inquisição (maldita), na tortura psicológica causada pelo pânico do
inferno, na vida envenenada pelos traumas sexuais, no desmoronamento da
identidade própria provocado pela imposição violenta da conversão, na
menoridade mental causada por pregações tonitruantes com ideias mesquinhas
acerca de Deus, quando se pensa em toda a crueldade legitimada religiosamente,
entende-se que para um número incalculável de pessoas teria sido preferível não
ter tido contacto com a religião e concretamente com o cristianismo histórico
que lhes foi apresentado ou imposto.
No entanto, é inegável que no cômputo geral o saldo
é incomparavelmente superior a favor do cristianismo, que foi na história da
humanidade a maior fonte de esperança para a vida e na morte. É reconhecido até
por não crentes que a consciência da dignidade infinita de ser homem, que já não
pode ser considerado como gado, assim se expressou o ateu
Ernst Bloch, e da democracia, da justiça social e da inviolabilidade dos
direitos humanos, que são divinos, não é desvinculável do cristianismo. Ainda
recentemente Umberto Eco, que se confessa laico, escrevia em carta
aberta ao cardeal Martini, de Milão, que, se fosse um viajante proveniente de
galáxias longínquas, ao encontrar-se frente a uma humanidade que soube
propor-se o modelo de Cristo, com o
amor universal, o perdão dos inimigos, a vida oferecida em holocausto pela
salvação dos outros, consideraria esta espécie miserável e
infame, que cometeu tantos horrores, redimida pelo simples facto de ter
conseguido desejar e crer que tudo isto é a Verdade.
O facto de historicamente a democracia e os
direitos humanos, cujas raízes também são bíblicas, terem tido de impor-se
frequentemente contra a Igreja institucional dá que pensar. E conhecida a
afirmação de Alfred Loisy, em O Evangelho e a Igreja, 1902, talvez
a obra de teologia que mais polémica levantou no nosso século: Jesus
anunciou o Reino, e o que veio foi a Igreja. Deste modo, o famoso teólogo
modernista católico exprimia, por um lado, uma certa decepção, pois a Igreja
não se identifica com o Reino de Deus, por outro, queria dizer que a Igreja é
uma forma histórica do Reino de Deus que vem, e está ao seu serviço». Anselmo
Borges, In I Millenari, Via col vento in Vaticano, Kaos Edizioni, 1999, O Vaticano
contra Cristo, tradução de José A. Neto, Religiões, Casa das Letras, 2005, ISBN
972-46-1170-1.
Cortesia Casa das Letras/JDACT