Crónica de uma difamação
anunciada
Uma criança de peito
«Dona Leonor decidiu aceitar a recomendação. Mas pouco depois deixou-se
convencer por outros cortesãos e continuou a exercer a regência. Apesar disso,
mandou chamar o infante Pedro para lhe dizer que, através do confessor do seu
marido, tivera conhecimento de que, antes de morrer, o monarca Duarte exprimira
a vontade de que o seu herdeiro se casasse com a filha mais velha do infante
Pedro. Algo que ela desejava cumprir e que o cunhado acabaria por aceitar com o coração cheio de alegria e os olhos
por isso não vazios de lágrimas.
NOTA: Isabel de Lencastre ou de Coimbra (1432-1455), futura
rainha consorte de Portugal, como mulher de Afonso V; filha do infante Pedro,
duque de Coimbra, e da catalã Isabel de Urgell, por sua vez filha do conde Jaime
de Urgell, um dos candidatos à coroa de Aragão que foram rejeitados pelo Compromisso de Caspe (1412). Acordo este
que levou ao trono o infante Fernando de Antequera, apesar de os direitos de
Jaime de Urgell serem mais consistentes que os do pai da rainha Leonor, por vir
de linha de varão: os direitos por via feminina não eram reconhecidos pela
tradição aragonesa. Segundo o cronista Rui de Pina, era esta a
causa da rivalidade entre a rainha e a sua cunhada, a duquesa de Coimbra. A
pouca simpatia que os infantes de Portugal sentiam pela sua cunhada devia-se
talvez a considerarem-na responsável pela morte em terra infiel do infante Fernando, o Infante Santo, o filho mais novo do rei João e de D. Filipa, pelo
qual os irmãos tinham especial afecto.
O consentimento e o entusiasmo de D. Leonor com este projecto de casamento
não foi bem recebido por toda a corte. Em especial pelo conde de Barcelos,
irmão natural de Pedro, cujo pai, o rei João I de Portugal, gerara antes de
casar com a rainha D. Filipa de Lencastre. De modo que o conde enviou a uma
audição com a rainha o arcebispo de Lisboa, um castelhano tio de Leonor, para
tentar convencê-la a desdizer-se e a prometer casar Afonso V com uma neta do
conde.
NOTA: Isabel de Portugal ou de Avis (1428-1496), filha do
infante João, duque de Beja, filho do rei João I de Portugal e de D. Filipa de
Lencastre, e de Isabel de Barcelos, filha do conde de Barcelos, depois duque de
Bragança, e de Beatriz Pereira, filha e herdeira do condestável Nuno Álvares
Pereira, herói de Aljubarrota. Rainha de Castela em 1447 e mãe de Isabel, a Católica em 1451.
Ao saber disto, o infante Pedro como
era prudente e discreto, mas não podia esquecer o que geralmente se crê e afirma da inconstância e pouca firmeza de
muitas mulheres pela sua natural condição, foi falar com a rainha e
pediu-lhe que lhe entregasse um documento no qual figurasse a promessa de
casamento do rei com a sua filha. Petição que D. Leonor aceitou com determinação,
fazendo inclusivamente com que o próprio infante redigisse o alvará. As
pressões sobre a rainha continuaram. No final de Outubro de 1438, ainda por concluir o seu quarto
mês de gravidez, D. Leonor começou a sofrer complicações na gestação, algo que
não lhe acontecera nas oito gravidezes anteriores. O medo de que os desgostos
provocados pelas rivalidades da corte acabassem por lhe provocar um aborto, levá-la-ia
a ordenar a transferência da corte para os seus domínios de Torres Novas, onde
contava com fiéis partidários.
No decorrer das primeiras Cortes do reinado do pequeno Afonso V de
Portugal, em Novembro de 1438,
devido às novas pressões e após sucessivas mediações do infante Henrique, D.
Leonor viu-se obrigada a partilhar a regência com Pedro, mas conservando sempre
a custódia do rei. O conde de Barcelos, continuando a desejar que o matrimónio
do rei com a sua neta fosse levado a bom termo, pediu à rainha para solicitar
ao duque Pedro a restituição da nota de entrega com a promessa matrimonial. D.
Leonor respondeu-lhe que isso implicaria ir contra a sua palavra, mas depois
mudou de ideias e comunicou-o pessoalmente ao infante Pedro, o qual, magoado, pegou
no alvará e, como testemunho da quebra da sua palavra, rasgou-o em duas metades
e entregou-as à cunhada. Assim que terminaram as Cortes de Torres Novas, quando a gravidez de Leonor chegara
ao quinto mês, por ser ano de escassez
e aquela comarca muito cara, foi decidido transferir a corte para Lisboa,
mais bem abastecida pelos navios que, de África à Hansa alemã, chegavam ao seu
porto. Pouco depois, na Câmara da cidade começaram a ouvir-se discursos que
punham em dúvida a capacidade das mulheres para governar, o que levaria a
rainha a ocupar-se das questões do seu despacho com mais esforço e continuidade do que era habitual e do que
requeria o seu frágil estado.
No início de Janeiro de 1439,
ia D. Leonor no sétimo mês de gravidez, a vida que se desenvolvia no seu seio
voltou a sofrer os perigosos efeitos das tensões governamentais. Devido a isso,
a rainha viu-se obrigada a seguir o conselho dos médicos de diminuir o ritmo de
trabalho. Mas as críticas à incapacidade das mulheres para se ocuparem da res
publica não pararam de aumentar na Câmara de Lisboa». In A
Rainha Adúltera, Joana de Portugal e o Enigma da Excelente Senhora, Crónica de
uma difamação anunciada, Marsilio Cassotti, A Esfera dos Livros, Lisboa, 2012,
ISBN 978-989-626-405-5.
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