Crónica de uma difamação
anunciada
Uma criança de peito
«Diz-se que o rei Duarte de Portugal foi contagiado pela peste ao
receber uma carta das mãos de um mensageiro. E que, logo aos primeiros
sintomas, o transferiram para a enfermaria do convento próximo da fortaleza de
Tomar, onde permaneceria os cerca de doze
ou treze dias, que duraram as febres. Pretendia-se evitar, assim, que a
família fosse contaminada pela doença, bem como proteger a vida do ser que crescia
no ventre da sua real esposa, grávida de pouco mais de dois meses. Essa vida era
a de uma futura infanta de Portugal e rainha de Castela cuja luta pela
existência começou antes de nascer, acabado de morrer o pai, na madrugada de 9
para 10 de Setembro de 1438.
No reino português poucos ignoravam que o infante Pedro, um dos irmãos
do falecido monarca, sempre ambicionara sentar-se no trono. De modo que a
ninguém surpreendeu que a rainha viúva de Portugal, D. Leonor de Aragão, logo
após a entronização do seu primogénito Afonso V, uma criança de seis anos que
mais tarde seria conhecido como o Africano,
tivesse convocado esse cunhado para ouvir a leitura do testamento do rei
Duarte. Para muitos, a surpresa chegou quando se soube que a última vontade do
monarca era a de que a sua mulher se encarregasse não apenas da tutoria do herdeiro
como também da regência. Poucos dias passados, alguns cortesãos avisados e virtuosos disseram à
rainha que o infante Pedro e os seus irmãos poderiam sentir-se ofendidos pelo
facto de serem governados por uma mulher, e
ainda estrangeira, uma vez que D. Leonor, apesar de ter o título de
infanta aragonesa, nascera na vila castelhana de Medina del Campo e era
filha de um infante castelhano convertido em rei de Aragão, pelos acasos do
destino, tinha ela nove anos.
NOTA: Infante Fernando de Antequera (1380-1416), segundo filho de Juan
I de Castela; rei de Aragão em 1412 devido à sua ascendência real aragonesa por
via materna. Casou-se com Leonor de Albuquerque (1374-1435), conhecida como la rica hembra (filha do infante Sancho
de Castela e da infanta Beatriz de Portugal, que por sua vez era filha
de Inês
de Castro e de Pedro I de Portugal). Desse modo, nas veias da rainha
consorte Leonor de Portugal corria mais sangue real português do que nas do seu
marido.
O rei Duarte casara com Leonor, já passavam ambos dos vinte e cincoanos,
num daqueles compromissos estratégicos que em diversas ocasiões levaram os
herdeiros portugueses a unir-se em matrimónio com infantas aragonesas, atentos
ao trono de Castela. Neste caso, quando em Portugal ainda havia vestígios da
última invasão castelhana, resolvida na batalha de Aljubarrota. Mas a relação
entre os esposos viria a verificar-se tão harmoniosa que tiveram um filho por
ano durante os primeiros oito anos de casados, por vezes sem sequer terem
passado dez meses do nascimento anterior. Esta saga foi interrompida após os portugueses
terem falhado a conquista de Tânger, em 1436.
Um fracasso militar agravado porque, para salvar as tropas do massacre, o irmão
mais novo de Duarte foi deixado como refém aos muçulmanos, para garantir a
devolução de Ceuta, conquistada pelos lusitanos duas décadas antes. Troca que,
por razões de interesse político e religioso, não aconteceu. Aquele que viria a
ser chamado de Infante Santo acabou
por morrer em cativeiro. Houve em Portugal muita gente a imputar a culpa destas
desgraças à castelhana, acusando-a
de ter convencido o marido a empreender essa campanha.
Segundo os rumores, depois de o seu cunhado Henrique, o Navegador, lhe ter prometido em troca
adoptar o segundo dos seus filhos e deixar-lhe o título de duque de Viseu e todos
os bens, uma vez que era solteiro e sem descendência. Talvez para calar essas
vozes, o rei Duarte escreveu o Leal
conselheiro, um original tratado político e moral que acabou por dedicar à
esposa pouco antes de a engravidar da infanta Joana.
Possivelmente como reacção a todos esses incidentes, quando os ecos dos
funerais do rei e da entronização do seu pequeno filho se extinguiram, os cortesãos
partidários do infante Pedro aconselharam a rainha viúva a evitar aos cunhados
uma quebra da sua autoridade e recomendaram-lhe que cedesse a regência a um
deles e que se dedicasse exclusivamente à criação dos filhos. Um conselho calculista
que também respondia a uma preocupação: o grande poder que detinham, em Castela,
dois irmãos da rainha, os chamados infantes de Aragão, tão castelhanos quanto
ela». In A Rainha Adúltera, Joana de Portugal e o Enigma da Excelente
Senhora, Crónica de uma difamação anunciada, Marsilio Cassotti, A Esfera dos
Livros, Lisboa, 2012, ISBN 978-989-626-405-5.
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