«E sendo o calor tanto, vão-se refrescando os assistentes,
com a conhecida limonada, o geral púcaro de água, a talhada de melancia, que
não seria por irem morrer aqueles que se consumiriam estes. E se o estômago
pede recheio mais substancial, não faltam aí os tremoços e os pinhões, as
queijadas e as tâmaras. El-rei, com os infantes seus manos e suas manas infantas,
jantará na Inquisição (maldita) depois de terminado o acto de fé, e estando já aliviado
do seu incómodo honrará a mesa do inquisidor-mor, soberbíssima de tigelas de
caldo de galinha, de perdigões, de peitos de vitela, de pastelões, de pastéis
de carneiro com açúcar e canela, de cozido à castelhana com tudo quanto lhe
compete, e açafroado, de manjar-branco, e enfim doces fritos e frutas do tempo.
Mas é, tão sóbrio el-rei que não bebe vinho, e porque a melhor lição é sempre o
bom exemplo, todos o tomam, o exemplo, o vinho não.
Outro exemplo, mais do proveito da alma, se o corpo tão repleto
está, será dado hoje aqui. Começou a sair a procissão, vêm os dominicanos à
frente, trazendo a bandeira de S. Domingos, e os inquisidores depois, todos em
comprida fila, até aparecerem os sentenciados, foi já dito que cento e quatro,
trazem círios na mão, ao lado os acompanhantes, e tudo são rezas e murmúrios,
por diferenças de gorro e sambenito se conhece quem vai morrer e quem não,
embora um outro sinal haja que não mente, que é ir o alçado crucifixo de costas
voltadas para as mulheres que acabarão na fogueira, pelo contrário mostrando a
sofredora e benigna face àqueles que desta escaparão com vida, maneiras
simbólicas de se entenderem todos quanto àquilo que os espera, se não reparassem
no que trazem vestido, e isso sim, é tradução visual da sentença, o sambenito
amarelo com a cruz de Santo André a vermelho para os que não mereceram a
morte, o outro com as chamas viradas para baixo, dito fogo revolto, se
confessando as culpas a evitaram, e a samarra cinzenta, lúgubre cor, com
o retrato do condenado cercado de diabos e labaredas, o que, passado a
linguagem, significa que aquelas duas mulheres vão arder não tarda. Pregou frei
João dos Mártires, provincial dos arrábidos, e certamente ninguém o estaria
merecendo mais, se nos lembrarmos de que arrábido foi o frade cuja virtude Deus
coroou engravidando a rainha, assim aproveite a prédica à salvação das almas
como aproveitarão a dinastia e a ordem franciscana em sucessão assegurada e
prometido convento.
Grita o povinho furiosos impropérios aos condenados, guincham
as mulheres debruçadas dos peitoris, alanzoam os frades, a procissão é uma
serpente enorme que não cabe direita no Rossio e por isso se vai curvando e
recurvando como se determinasse chegar a toda a parte ou oferecer o espectáculo
edificante a toda a cidade, aquele que ali vai é Simeão de Oliveira Sousa, sem
mester nem benefício, mas que do Santo Ofício (maldito) declarava ser qualificador,
e sendo secular dizia missa, confessava e pregava, e ao mesmo tempo que isto fazia
proclamava ser herege e judeu, raro se viu confusão assim, e para ser ela maior
tanto se chamava padre Teodoro Pereira de Sousa como frei Manuel da Conceição,
ou frei Manuel da Graça, ou ainda Belchior Carneiro, ou Manuel Lencastre, quem
sabe que outros nomes teria e todos verdadeiros, porque deveria ser um direito
do homem escolher o seu próprio nome e mudá-lo cem vezes ao dia, um nome não é
nada, e aquele é Domingos Afonso Lagareiro, natural e morador que foi em
Portel, que fingia visões para ser tido por santo, e fazia curas usando de
bênçãos, palavras e cruzes, e outras semelhantes superstições, imagine-se, como
se tivesse sido ele o primeiro, e aquele é o padre António Teixeira Sousa, da
ilha de S. Jorge, por culpas de solicitar mulheres, maneira canónica de dizer
que as apalpava e fornicava, decerto começando na palavra do confessionário e
terminando no acto recato da sacristia, enquanto não vai corporalmente acabar
em Angola, para onde irá degredado por toda a vida, e esta sou eu, Sebastiana
Maria de Jesus, um quarto de cristã-nova, que tenho visões e revelações, mas disseram-me
no tribunal que era fingimento, que ouço vozes do céu, mas explicaram-me que
era efeito demoníaco, que sei que posso ser santa como os santos o são, ou
ainda melhor, pois não alcanço diferença entre mim e eles, mas repreenderam-me
de que isso é presunção insuportável e orgulho monstruoso, desafio a Deus, aqui
vou blasfema, herética, temerária, amordaçada para que não me ouçam as temeridades,
as heresias e as blasfémias, condenada a ser açoitada em público e a oito anos
de degredo no reino de Angola». In José Saramago, Memorial do
Convento, Editorial Caminho, O Campo da Palavra, 27ª Edição, 1998, ISBN
972-21-0026-2.
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