«A imprensa publicou já as máximas da inaudita jurisprudência deste
tribunal, a análise dessas máximas e as consequências que têm resultado delas
em muitos casos; mas ninguém, que me conste, tem até, agora ousado revelar o
que se passa no secreto dessa casa, porque os inquisidores, empenhados em
manterem ilesa a sua jurisdição, são os primeiros que ocultam ou não descobrem
o triste sudário dos segredos da instituição. Demais os que foram dependentes e
os agentes da Inquisição (maldita), que sabem o que aí se passa e têm justos
motivos de queixa, receiam ser punidos horrivelmente pelos inquisidores, quando
sejam convencidos de terem faltado ao juramento a que os obrigaram antes da sua
soltura: e daqui resulta que os mistérios da Inquisição (maldita) se conservam
sempre impenetráveis, tornando-se quase impossível conhecer-se a verdade sem
sujeitar-se o delator à dura prova de ser arrastado às prisões do Santo Ofício (maldito)
e fazer aí uma dolorosa experiência à sua própria custa, ou quando informado
por alguém que por fortuna tenha escapado de sucumbir nas masmorras
inquisitoriais.
NOTA: Depois da abolição das inquisições em Portugal e Espanha
houve na verdade várias publicações relativas aos tribunais destes e doutros
reinos da Europa e da América; mas que haja uma narração especial da Inquisição
de Goa, publicada na própria época, como é a do Autor, não nos consta; e muitas
pessoas autorizadas também o afirmam.
É mister além disto que a vítima que for encerrada nos cárceres do
Santo Ofício (maldito) tenha tido durante a sua prisão o preciso cuidado e pachorra
de observar o que se passa lá dentro, para que, quando for solta, possa, sem
escrúpulo algum, referir tudo quanto haja sabido ou sofrido nos mesmos cárceres.
Todos estes motivos fazem conhecer a bem poucas pessoas a história verídica do
regime interior deste famoso tribunal; e como dando-se a Deus o que é de Deus,
corre a nós outros a rigorosa obrigação de sermos úteis ao nosso próximo, e
sobretudo ao público, determinei-me a dar a presente narrativa do que sofri e
observei nas prisões da Inquisição de Goa (maldita), adicionando-lhe o que me
foi narrado por pessoas de crédito, do meu conhecimento familiar, durante a
minha reclusão e depois da minha soltura.
Vacilei por muito tempo se deveria dar à estampa este meu trabalho,
porque há mais de oito anos que me recolhi a França, e vai para mais de quatro
que o escrevi. Receava escandalizar o Santo Ofício (maldito) faltando ao
juramento que prestara na minha saída, e este meu sentimento havia tido o apoio
de pessoas pias e timoratas; mas contrabalançando-lhe o sentir doutras também
pias que me pareceram contudo mais ilustradas, me resolvi a preferir a opinião
destas, porque me persuadiram que era por muitos títulos de interesse público o
verdadeiro conhecimento do regime deste tribunal e que a minha história podia
ainda aproveitar aos próprios inquisidores, quando soubessem colher-lhe o
fruto, porque eram eles que tinham o direito e dever de regular o seu procedimento
e pôr limites à sua jurisdição.
E que quanto ao juramento tão injustamente extorquido, como faz a
Inquisição (maldita) com a ameaça de fogo, ficaria dele dispensado pela
utilidade pública da minha narração, ficando-me a consciência livre e cumprindo
eu uma espécie de obrigação de vulgarizar pela imprensa a noção que obtivera daquele
tribunal. Estas são pois as razões que há mais tempo me privaram e hoje obrigam
a dar ao público a minha narração, desassombrada de todos os escrúpulos.
Se a demora em parte prejudicou o mesmo público,
porque se não informou mais cedo, por outro lado sirva ela de dar um testemunho
autêntico que não andei neste negócio com precipitação, e que o ressentimento
dos maus tratos, com que fui torturado, não influiu em coisa alguma nesta minha
relação. No mais o que eu disser da Inquisição de Goa, (maldita) fique-se aqui
entendendo que é comum às de Portugal e Espanha, porque embora esta última seja
menos cruel que as outras duas, visto as execuções públicas chamadas autos-de-fé serem ali menos frequentes,
e embora a ignorância na Índia seja ainda maior que a de Portugal, todavia
vê-se pelo relatório que apresentou a Gazeta
de França de 12 de Agosto de 1680,
que em todos esses reinos predominam sempre o mesmo espírito, as mesmas regras
e a mesma severidade nas execuções da Inquisição (maldita), encontrando-se nas
descrições do relatório circunstâncias ainda mais horríveis que as do auto-de-fé em que me achei em Goa». In
Charles Dellon (1649-1709?), Relation de L’Inquisition de Goa, 1687, Leyden,
Holanda, Narração da Inquisição de Goa, tradução e notas de Miguel Vicente
Abreu (1827-1883), Nova Goa, 1866, Edições Antígona, Lisboa, 1996, ISBN
972-608-075-4.
A saudade do Álvaro José (onde quer que estejas!)
Cortesia de E. Antígona/JDACT