quinta-feira, 25 de abril de 2013

Narração da Inquisição de Goa. Charles Dellon. «… da minha narração, ficando-me a consciência livre e cumprindo eu uma espécie de obrigação de vulgarizar pela imprensa a noção que obtivera daquele tribunal. Estas são as razões que há mais tempo me privaram e hoje obrigam a dar ao público, desassombrada de todos os escrúpulos»

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«A imprensa publicou já as máximas da inaudita jurisprudência deste tribunal, a análise dessas máximas e as consequências que têm resultado delas em muitos casos; mas ninguém, que me conste, tem até, agora ousado revelar o que se passa no secreto dessa casa, porque os inquisidores, empenhados em manterem ilesa a sua jurisdição, são os primeiros que ocultam ou não descobrem o triste sudário dos segredos da instituição. Demais os que foram dependentes e os agentes da Inquisição (maldita), que sabem o que aí se passa e têm justos motivos de queixa, receiam ser punidos horrivelmente pelos inquisidores, quando sejam convencidos de terem faltado ao juramento a que os obrigaram antes da sua soltura: e daqui resulta que os mistérios da Inquisição (maldita) se conservam sempre impenetráveis, tornando-se quase impossível conhecer-se a verdade sem sujeitar-se o delator à dura prova de ser arrastado às prisões do Santo Ofício (maldito) e fazer aí uma dolorosa experiência à sua própria custa, ou quando informado por alguém que por fortuna tenha escapado de sucumbir nas masmorras inquisitoriais.

NOTA: Depois da abolição das inquisições em Portugal e Espanha houve na verdade várias publicações relativas aos tribunais destes e doutros reinos da Europa e da América; mas que haja uma narração especial da Inquisição de Goa, publicada na própria época, como é a do Autor, não nos consta; e muitas pessoas autorizadas também o afirmam.

É mister além disto que a vítima que for encerrada nos cárceres do Santo Ofício (maldito) tenha tido durante a sua prisão o preciso cuidado e pachorra de observar o que se passa lá dentro, para que, quando for solta, possa, sem escrúpulo algum, referir tudo quanto haja sabido ou sofrido nos mesmos cárceres. Todos estes motivos fazem conhecer a bem poucas pessoas a história verídica do regime interior deste famoso tribunal; e como dando-se a Deus o que é de Deus, corre a nós outros a rigorosa obrigação de sermos úteis ao nosso próximo, e sobretudo ao público, determinei-me a dar a presente narrativa do que sofri e observei nas prisões da Inquisição de Goa (maldita), adicionando-lhe o que me foi narrado por pessoas de crédito, do meu conhecimento familiar, durante a minha reclusão e depois da minha soltura.
Vacilei por muito tempo se deveria dar à estampa este meu trabalho, porque há mais de oito anos que me recolhi a França, e vai para mais de quatro que o escrevi. Receava escandalizar o Santo Ofício (maldito) faltando ao juramento que prestara na minha saída, e este meu sentimento havia tido o apoio de pessoas pias e timoratas; mas contrabalançando-lhe o sentir doutras também pias que me pareceram contudo mais ilustradas, me resolvi a preferir a opinião destas, porque me persuadiram que era por muitos títulos de interesse público o verdadeiro conhecimento do regime deste tribunal e que a minha história podia ainda aproveitar aos próprios inquisidores, quando soubessem colher-lhe o fruto, porque eram eles que tinham o direito e dever de regular o seu procedimento e pôr limites à sua jurisdição.
E que quanto ao juramento tão injustamente extorquido, como faz a Inquisição (maldita) com a ameaça de fogo, ficaria dele dispensado pela utilidade pública da minha narração, ficando-me a consciência livre e cumprindo eu uma espécie de obrigação de vulgarizar pela imprensa a noção que obtivera daquele tribunal. Estas são pois as razões que há mais tempo me privaram e hoje obrigam a dar ao público a minha narração, desassombrada de todos os escrúpulos.
Se a demora em parte prejudicou o mesmo público, porque se não informou mais cedo, por outro lado sirva ela de dar um testemunho autêntico que não andei neste negócio com precipitação, e que o ressentimento dos maus tratos, com que fui torturado, não influiu em coisa alguma nesta minha relação. No mais o que eu disser da Inquisição de Goa, (maldita) fique-se aqui entendendo que é comum às de Portugal e Espanha, porque embora esta última seja menos cruel que as outras duas, visto as execuções públicas chamadas autos-de-fé serem ali menos frequentes, e embora a ignorância na Índia seja ainda maior que a de Portugal, todavia vê-se pelo relatório que apresentou a Gazeta de França de 12 de Agosto de 1680, que em todos esses reinos predominam sempre o mesmo espírito, as mesmas regras e a mesma severidade nas execuções da Inquisição (maldita), encontrando-se nas descrições do relatório circunstâncias ainda mais horríveis que as do auto-de-fé em que me achei em Goa». In Charles Dellon (1649-1709?), Relation de L’Inquisition de Goa, 1687, Leyden, Holanda, Narração da Inquisição de Goa, tradução e notas de Miguel Vicente Abreu (1827-1883), Nova Goa, 1866, Edições Antígona, Lisboa, 1996, ISBN 972-608-075-4.

A saudade do Álvaro José (onde quer que estejas!)
Cortesia de E. Antígona/JDACT