«A tentação totalitária dos militares foi o pretexto para uma classe
política impaciente disfarçar a sede de poder de que os acusavam. Sem
elegância, apressaram-se a dispensar aqueles que muito pouco tempo antes adulavam.
Melo Antunes, que acumulara o cargo de conselheiro com o de presidente da
Comissão Constitucional, ignorou, contudo, ressentimentos, rancores e
desilusões pessoais, que remeteu sempre para os atalhos da História, e
traçou a M. João Avillez o diagnóstico implacável:
- Não saio desiludido. O que julgo é que esta experiência poderia ter sido muito mais rica se não tivesse havido tantos erros, desvios, incapacidades para compreender que o 25 de Abril era a grande oportunidade histórica. Não houve a capacidade global de determinar uma estratégia de transformação estrutural da sociedade portuguesa.
Não contassem com ele para o discurso da vitimização tão nosso, tão
português. E muito menos para se pôr em bicos de pés. Contassem, isso sim, que desse a cara pelas grandes causas de uma
vida, num combate leal e responsável tanto nas vitórias como nas derrotas. Não
contaram. Talvez pela falta de adversários à altura, os seus combates foram-se
tornando mais solitários. O seu pesado silêncio tem a exacta medida do habitual
descaso nacional, quando não da mesquinhez revanchista e interesseira. Com as
excepções dos presidentes Eanes e Sampaio, ninguém lhe achou grande préstimo
nem dentro nem fora. A vasta experiência internacional dos governos que
integrou e das funções de conselheiro e de subdirector da UNESCO que desempenhou
entre 84 e 88 não lhe deram o perfil ideal para, ser o nosso candidato a
director-geral dessa organização, em 92.
Vítima de alguma injustiça?
A pergunta de José Carlos de Vasconcelos, a resposta é previsível, mas
nem por isso menos perturbante:
- Não vejo o caso dessa maneira: tive a intervenção que tive, o meu papel histórico esgotou-se. Sou um cidadão como outro qualquer. Se existe injustiça, não é contra mim, mas generalizada em relação a quase todos os que se bateram contra a ditadura.
A sua inscrição no PS de Jorge Sampaio, em 1991, e o seu apoio à moção Falar É Preciso, de Manuel Alegre,
ao Congresso do PS, em 1999, não são
já actos políticos. Têm a imensa carga simbólica dos gestos gratuitos ou
anacrónicos. Um gesto de soberana liberdade. Um derradeiro e inesperado
presente. Imerecido para uns, imprestável para tantos outros, mas seta apontada
ao coração e à inteligência dos que o mereciam e que o souberam acolher não
como confissão ou testamento, mas como legenda de uma vida. A amizade vigilante
de Lobo Antunes fez-lhe o mais belo epitáfio:
- Quando Ernesto Melo Antunes morreu, vivi no funeral uma das situações mais comoventes e emocionantes da minha vida. Estavam ali os rapazes que fizeram a Revolução, aqueles bravos capitães, companheiros de Ernesto, rapazes que já tinham sessenta anos, choravam como crianças. Homens duros, que tinham provado a sua enorme coragem, mas choravam desconsolados, porque não só perdiam um amigo e um grande homem. Perdiam sobretudo um camarada. Era muito emocionante vê-los tão desolados. Chorava-se a morte de Ernesto, e também se choravam muitas outras coisas que não tinham podido acontecer.
Este livro é para nós muito mais do que um imprescindível e precioso documento
com que enriquecemos o nosso espólio de História Oral e que entendemos ser o
momento de oferecer quer a quem viveu a Revolução, quer a quem a estuda, quer
finalmente a quem se sinta minimamente comprometido com a História deste país. É
também a homenagem a Ernesto Melo
Antunes e aos companheiros que no seu exemplo se revêem e se encontram.
Homenagem ao que a História regista e é passado. Mas também às sementes de futuro
que nela lançaram. Mas sabemos que os ventos são caprichosos e que há terras
sedentas de sementes». In Melo Antunes, O Sonhador Pragmático,
Maria Manuela Cruzeiro e Boaventura de Sousa Santos, Histórias da História,
Editorial Notícias, 2005, ISBN 972-46-1563-4.
Cortesia de E. Notícias/JDACT