Justificação
«Quero reconhecer publicamente a minha dívida para com uma página de
Heine, aquela em que descreve um concerto de Paganini. Li-a há
aproximadamente meio século e, como será fácil de comprovar, só a reli depois
de ter escrito este livro mas, da sua recordação, ficou-me uma imagem de
insistente recorrência, e foi dela que me servi. A influência aproveita-se, neste caso, de um dos processos mais
eficazes, a saber, o de escrever precisamente o contrário daquilo que se toma corno
modelo: um cavalheiro elegante e atraente (por exemplo) em vez de um feio e mal
vestido, etc. Não aspirei em nenhum momento a que a minha descrição de um
concerto romântico superasse a de Heine. Deus me livre! Entre outras razões porque
eu nunca assisti a nenhum concerto romântico, nem a sonatas para violino e
guitarra, ou vice-versa: só as conheço já embaladas. Descreve Heine a passagem de
Paganini pelas ruas de Hamburgo, acompanhado de um sujeito pequeno,
ridículo, talvez travesso: a esta personagem se referem as linhas textuais:
- Claro que o vulgo ignaro imagina que este acompanhante e um autor de comédias e de anedotas, Harry, de Hannover, que Paganini leva consigo, nas suas viagens, para administrar os assuntos de dinheiro. O povo não sabe que o diabo tomou a figura de Jorge Harry e que a desditosa, alma deste homem esta encerrada em Hannover, num caixote, até que o demónio lhe devolva o seu invólucro Carnal, para acompanhar pelo mundo o seu mestre Paganini na forma, mais digna, de cão negro.
A menção do diabo, feita com tanta seriedade, é-me utilíssima, ainda
que semelhante personagem não seja nenhuma novidade quando se trata de Paganini,
que teve com ele pactos e acordos secretos e, de certo modo, conjecturais.
[…]
Ha que recuperar o diabo para a literatura e eu, que o venho fazendo
desde 1938, nunca fui condecorado
por isso, nem sequer pelo próprio diabo. Provavelmente não me está agradecido
por isso, afinal, é um pormenor frívolo. Nem todas as personagens literárias são
generosas, nem sequer as grandes, a não ser aquelas em que a generosidade e a
gratidão figuram como programa necessário ou aleatório de conduta. Tudo
consiste, pois, em inventar um diabo magnânimo e em torná-lo verosímil: que é o
mais difícil mas, também, o mais urgente. Se já não se crê no diabo, não é
porque os filósofos ou os teólogos e talvez, também, os físicos, nos tenham demonstrado
a sua inexistência mas, sim, porque os que nele acreditam ou dizem acreditar o
concebem sob aparências inverosímeis, pouco mais que um bruxo sujo de aldeia. O
mais importante do diabo, o que eu acho especificamente diabólico é a sua
capacidade de transformação.
[…]
Bom. Já está bem. Comecei com o propósito de compor uma justificação
desnecessária e acabei por concluir ao meu gosto. E o que realmente me diverte.
Enfim, como dizem as bruxas do Macbeth:
Thrice to thine, and thrice to mine, and thrice
again, to make up nine. (Três vezes ao teu, e três vezes com a
minha, e três vezes mais, para
compensar nove. Tradução livre.)
A Reflexão XIII
Chegou o momento dos amores.
Lava o coração e as palavras.
Quando tirares da alma uma, qualquer,
vê se resplandece,
ou se, pelo menos, aquece; desconfia
daquelas que cintilam no escuro;
por detrás jaz o engano.
É missão da mente
trazer-te a esperança ou a recordação:
o seu brilho mate anuncia
que envia o seu fulgor para as entranhas,
as de sangue e de sonho; sangue digo,
o sangue reclamado pelo outro.
Não penses que da alma se prescinde,
nem que o amor é só corpo:
acaba tudo nele o que nele começa;
mas, de onde corre, não se sabe:
lugar? tempo? razão? melancolia?
a ânsia do amor gera-se dentro:
parte do silêncio íntimo
progride veia a veia
pelas capas internas da vida
até que o roçagar dói e faz sangue.
Então, sai a ânsia.
Salta aos olhos ou por eles salta,
salta como uma chama ou uma angústia,
como um suspiro que não busca um nome
ou o tremor de uma mão sem objecto.
Já não remexe dentro, já não espera
nada da alma nem da sua dor.
Muitas vezes se enganam com o gozo
este anelo, e a ânsia;
mas o prazer deixa-lhes só areias
nos lábios ressequidos.
Esse prazer é sempre solitário,
ainda que ao lado esteja o outro.
Nunca sabes o nome do que geme
como tu, junto a ti e, entre ambos, os corpos
terra hirta serão, terra sem água:
às areias leva-as o vento.
Porque não mordes essa pegada fria
e retiras o sangue às recordações?
Porque não buscas, no ar, o outro?
Está longe, passado o horizonte,
onde não pode estar e onde pode:
alto, diz-se fundo;
claro, diz-se escuro,
e se diz amanhã, será nunca,
ainda que esse nunca no amor não exista,
ainda que seja esse nunca do nada:
mas ele está aí, esperando por ti.
Não me respondas que já não me entendes:
confuso, no amor, é como claro,
e as línguas do amor não se adivinham.
Contudo, porque não falar de amores?
As histórias de amor são infinitas,
felizes umas, desditosas outras:
é o que dizem aqueles que no-las contam,
como se as tivessem presenciado.
Ninguém sabe o que dizem os amantes
quando se olham silenciosamente;
ninguém sabe o que fazem, ou se fizeram
algo mais do que chamar-se pelos nomes.
Para que querem mais se isso lhes basta?
O amor é, por dentro, misterioso.
Essas mãos de amantes, que resvalam
pela parede de pedra, ao afastar-se,
e começam a esperar desde agora mesmo;
essas mãos crispadas, que retêm
cada uma a marca da outra,
são silêncio de amor, são esperança.
Mas, o resto..., quem sabe o que é o resto?
In Gonzalo Torrent, La Rosa de los vientos, A Rosa dos Ventos,
Materiais para uma Opereta sem Música, Difel, Linda-a-Velha, 1995, ISBN
972-29-0326-8.
continua
Cortesia de Difel/JDACT