Justificação
«Ignoro se a minha mãe, que chegou a ser sua amiga e talvez confidente,
terá ouvido da princesa alguma revelação; o que sei é que algumas vezes me pediu
que, quando morresse, tomasse conta dos seus papéis e das suas coisas pessoais
e evitasse que caíssem em mãos de jornalistas ou de historiadores. Suponho que
tenha sido essa a. razão pela qual este manuscrito
me veio parar às mãos. Não há qualquer certeza quanto à sua veracidade. A
mulher a quem chamávamos a princesa seria, na realidade, Myriam? A história que o manuscrito
conta será uma fantasia ou conta-se, de maneira directa, algo que realmente
aconteceu? Ou tenta-se fazer crer algo que não aconteceu jamais? Não posso
dizer-lhe nada… Ao oferecer-lhe o manuscrito,
sugiro-lhe que o leia e que faça com ele o que lhe parecer mais honrado; só lhe
peço que, se alguma vez o publicar, mude os nomes das pessoas e baralhe os dos
lugares até chegar a situá-lo num país indefinido.
Disse-lhe que esse era o procedimento do costume, no caso de o próprio
redactor do manuscrito não ter
tomado, ele próprio, as suas precauções e sempre que a sua intenção expressa
não fosse a contrária. Não considero indispensável esclarecer aqui se manipulei
ou não o texto, ao traduzi-lo, para além do exigido pela própria versão, que
creio bastante fiel e, nalgumas passagens, poeticamente superior ao original;
pois o autor, esse Ferdinando Luís com cuja prosa, parece ter-se limitado
a declarar o seu pensamento e a expor as suas recordações, o que já não me parece
pouco.
Não sei se por acaso, se por erro, no rosto do manuscrito vinha esse poema que intitulei Meditação
XIII por fidelidade ao original. Estava escrito em português, o que me
mergulha em conjecturas, sendo a mais óbvia, esta: terá alguma relação com o conteúdo de A Rosa dos Ventos ou,
como a de uma, árvore num livro, essa folha lírica terá caído por acaso no
canhenho do manuscrito? Teriam Myriam e Ferdinando Luís
aprendido tão perfeitamente o português que ousassem uma combinação de hendecassílabos com heptassílabos
que não soasse demasiado mal? Faltam-me dados para poder responder. Não
posso, portanto, esclarecer outras conjecturas lógicas: sendo a Meditação
XIII, terão existido, pelo
menos, outras doze? E se esta foi arrancada deliberadamente de um livro
de poemas mais extenso e aqui colocada, porque
razão terá sido escolhida? Não é fácil que contenha uma chave, ou que
tente mostrar-nos o critério com que o manuscrito
pode (ou deve) ser lido? Agora
que se fala tanto dessa pedantice das
várias leituras possíveis, não virá esse poema indicar-nos que só existe
uma legítima, a que descarta qualquer interpretação histórica, sociológica ou mágica
e reduz a, mera, historieta de amor o conteúdo do manuscrito, ainda que com ingredientes de outra natureza,
como na vida, incluídos pela própria
fatalidade dos acontecimentos? Foi como historieta de amor que a
traduzi, de vários tipos de amor porque, dentro dessa palavra tão absoluta se
encerram e muitas vezes se escondem, modos distintos e até opostos de os homens
se relacionarem com as mulheres. Não se pode negar, todavia que, por muito
diferentes que sejam esses modos, eles apontam, com bastante unanimidade, para
a mesma interpretação única, inclusive nos casos em que o amor se manifesta como
ódio». In Gonzalo Torrent, La Rosa de los vientos, A Rosa dos Ventos,
Materiais para uma Opereta sem Música, Difel, Linda-a-Velha, 1995, ISBN
972-29-0326-8.
continua
Cortesia de Difel/JDACT