«Quanto mais davam, mais tinham. A ruína surgiu quando começaram a dar
com mão pequena e a tirar com mão grande. Semearam a ira. O fim tornou-se uma
iminência. Espera, frei João, que as canseiras me pesam. Deixa-me gozar o descanso
das lembranças, nesta ala do claustro do rei Dinis. Sempre gostei de olhar a
Lua a entrar pelo rendilhado do claustro. O céu deve ser isso, o gosto das
coisas através do rendilhado ilógico do destino. O inferno, ao contrário, deve
ser as regras, na quadratura fria do fundamento lógico. Quanto mais leis fazemos, mais
infelizes somos. O fundamento
não está na razão, está no infinito. Os homens de Deus quiseram agarrar
o infinito e moldá-lo à sua medida. Puseram o infinito ao seu serviço.
Lembro-me de ler isto num livro perdido. O claustro era o sítio da leitura ou,
como se pretendia dizer, o sítio de alimentar o espírito.
Ao lado, nesta ala, fica o sítio de alimentar o corpo. O refeitório, na
imponência dos ágapes. E a cozinha, onde se assava um boi inteiro. Mas ainda lá
está a ministra. A ministra
era a porta que dava passagem do refeitório para a cozinha. Estreita, no
pequeno arqueamento gótico. Quando a gordura da terra se prolongou na eminência
dos estômagos, a ministra já
não servia para passar gente, mas apenas para passar pratos e sobras. Se a
morte é uma certeza, a vida é com certeza uma utopia. Os bens da terra, a
ambição, a incongruência de olhar como definitiva a vida, é isso que envenena
os poucos dias do homem. Não fomos feitos para isto. De longe em longe parece
que queremos auto-destruir-nos. Achais,
frei Elias Cravo, que desta vez o Mosteiro terá o seu fim definitivo? Ficarão
as pedras e as paredes. Essas só o tempo lhes traçará o destino.
O meu Mosteiro nasceu com os alvores do reino, quando, por esse mundo
de Deus, cistercienses e templários pensavam renovar o universo. Uns organizando
a terra. Outros indo ao encontro das origens da crença, procurando o que havia
de comum nos credos. Isso foi um sonho de antes que alguns fizessem da religião
um montão de regras. Detesto regras e penitências. Acho que Deus não fez o
homem para ser objecto de sofrimento. Seria demasiada maldade para um Deus a
que chamamos Pai. Pater Noster.
Não acreditais no valor redentor do sofrimento? Foi isso o que nos ensinou a
nossa raiz judaica. E amarrou-nos a um livro. Ficámos a religião do livro,
judeus, cristãos e muçulmanos. Todos a adorar o mesmo Deus. Todos a odiar-nos
pelos séculos fora. Só há um livro, que está cá dentro gravado, que se vai
aprendendo a ler com o tempo. Cada um e os homens todos, com o andar dos
tempos. É a vida o livro, a história dos homens.
Quando o rei Afonso, o
primeiro deste nome, essa mistura de salteador e de rei, tentava alargar o
reino pela terra de mouros de além-Tejo e sacudir a tutela de Leão, do primo,
que a si mesmo se chamava imperador, procurou aliados além dos Pirenéus. De onde
viera o seu pai, o conde Henrique, o
franco. Era duvidoso que achasse apoio no papa, sempre ao longo dos tempos
bem manobrado pelo poderio de quem mandava na Espanha católica. Conheci um
velho cisterciense historiador que, no fim dos seus anos de semiloucura senil,
dizia: Quanto mais perto de Roma mais
longe de Deus. Ele lá tinha as suas razões, que a história lhe dava.
O rei Afonso encontrou apoio num homem pequeno e magro, diácono por
opção, pois nunca quis ser padre, aquele a quem, por ironia do destino,
chamamos o nosso padre S. Bernardo. Bernardo de Claraval, o homem mais
influente do seu tempo. Poderoso na força moral e na força dos seus conventos,
espalhados por essa Europa desentendida. Poderoso suficiente para ver como papa
um cisterciense. Foi ele, o rei Afonso,
que trouxe os cistercienses para Alcobaça. Diz-se que por promessa pela conquista de Santarém. Diz-se
que o sítio foi assinalado pela lança do rei, atirada do alto dos Candeeiros e
que veio cair no poço Suão, na nascente do rio Alcoa. Não seja de admirar
a distância, pois este povo quando sonha é capaz de chegar ao mar do Algarve e
continuar por todo o mar e mundo. O sítio era agreste. Os cistercienses mudaram
a lança e fizeram o seu Mosteiro neste lugar, na confluência dos rios, onde se
abrem as terras gordas das planícies, e aqui fizeram maravilhas hidráulicas e a
fartura das granjas. Ao rei disseram, com a ingenuidade manhosa dos simples, que,
enquanto dormiam, tinham vindo os anjos e mudado as marcações para o sítio onde
estamos. Um bom milagre justifica muita coisa
e apazigua mesmo um rei bravio.
Depois passou por aqui a história toda do reino, que te irei contando,
no que anda de braço dado com Alcobaça, e que te irei narrando enquanto
houver noites desta solidão, na recolha de tudo o que o espírito deixou escrito».
In
Luís Rosa, O Claustro do Silêncio, Editorial Presença, Lisboa, 2002,
ISBN978-972-23-2902-6.
Cortesia de E. Presença/JDACT