Cerco de 1418-1419
«Em 18 de Fevereiro de l416
o rei João I atribuiu ao filho Henrique:
- o encargo... de todas as cousas que cumprem à nossa cidade de Ceuta e para sua defensão... Façam e despendam tudo aquilo que lhes o dito infante Henrique mandar fazer e despender por suas cartas e alvarás assim como nós mesmo lho mandássemos fazer e despender.
O rei escolhia o filho Henrique para instrumento da política
marroquina. Em 1418, pela bula Rex
Regum o papa Martinho V apelou à cruzada contra os muçulmanos. Pelo seu
lado, o rei de Portugal obtinha, nas Cortes de Santarém desse ano, um
pedido e meio para a defesa, contra as ameaças a Ceuta e as que provinham de
novo de Castela, e contratava em Inglaterra o serviço de 300 lanças. As rendas
da Ordem Militar de Santiago, senhora de boa parte das vilas marítimas do Sul,
foram destinadas à luta contra os infiéis. O mesmo sucederá em 1420 às rendas da Ordem de Cristo,
criada pelo rei Dinis com o expresso desígnio de combater os muçulmanos. Nesse
ano, João I obtinha do papa a entrega do governo da Ordem de Cristo a seu filho
Henrique, o homem designado para comandar o socorro à cidade de Ceuta, mas o
apoio logístico do reino, como se vê pela documentação, cabia ainda ao infante
Duarte.
Em 1419 os mouros vieram, em
grande força, cercar Ceuta por terra e mar. Alguns combatentes tinham
caminhado, durante mês e meio, a pé e a cavalo. As atalaias avistaram os
primeiros inimigos a 13 e 14 de Agosto. Os cercadores enchiam as
estradas e vieram assentar as suas tendas nas quintãs que se estendiam até ao
mar. Zurara põe na boca do conde Pedro palavras de ânimo: oh nobre
gente e nação português! Dos quatro reinos cristãos da Península, foi no nosso
que mais perfeitamente ficou a linhagem gótica. Não estranheis, os mouros
juntaram esta multidão toda para ver se vos podem espantar.
NOTA: Zurara diz seguir o relato que, primeiramente, ajuntou o
Comendador. Como se chamava ele? De que Ordem? O relato é vivo, pleno de
informações e de ideologia. As ondas andavam tintas do sangue daqueles infiéis.
In Crónica do Conde D. Pedro.
Ao terceiro dia do assédio, as fustas de Granada vogaram para a praia
de Almina, mas os besteiros não lhes deram trégua. Pelo seu lado, a gente
de terra assediou e tomou a Torre de Bulhões que pertencia a João
Pereira. A torre dominava o vale desse nome onde, no tempo dos mouros,
vicejavam pomares, jardins, torres e casas pintadas. Os assaltantes tentaram escalar
o muro por cima da porta de Fez. As bestas, algumas de garrucha e de
torno, provocavam muitas baixas na multidão compacta. Havia mulheres que acarretavam
pedras, outras vestiam roupas varonis e combatiam com lança e escudo. A mulher
de Rui Gomes ajudava o marido nos tiros de besta e o conde Pedro
disparava como qualquer um dos servidores.
Mas quando as fustas de Granada tomaram no mar uma zabra e redobraram
os seus alaridos, muitos dos cercados temeram, mas aguentaram e passaram a
noite a remendar as brechas rasgadas nos muros. Ao outro dia, as fustas mouras
voltaram carregadas de combatentes. Encostaram novas escadas ao muro, mas os
besteiros derrubaram os primeiros. Os segundos, como era seu costume, retiravam
os corpos e caíam varados pelos viratões.
A pressão maior incidiu sobre a Torre de Álvaro Mendes. Na cidade estava
preso um arrais mouro. Fugiu pelo cano de esgoto. Era tão alto o cano que um
homem podia ir de pé; e tão largo que permitia dois homens a par. Os mouros da
praia vieram recolher o arrais e tentaram entrar pelo cano.
Quando a maré baixou, o conde mandou cavaleiros e besteiros carregar
sobre a multidão. Os cercadores tentaram fugir para as fustas, mas tinham
ficado a seco sobre as pedras. Houve muitos mortos e feridos, colhidos pelos viratões.
Armadas de socorro
Do reino saiu um primeiro socorro de 600 homens. Entre os capitães
seguia Fernando de Noronha, futuro capitão da praça e depois marquês de
Vila Real, os filhos de João Vaz de Almada, Pero e Álvaro, e Luís Gonçalves
Malafaia, que depois foi rico-homem.
Demoraram seis dias a chegar a Ceuta. Do Porto veio Fernão Sá, alcaide
mor; do Algarve, Micer Carlos e Afonso Vasques Costa. Nas suas terras
de Coimbra, o infante Pedro soube que o irmão Henrique tinha licença para
embarcar e comandar uma segunda frota. Veio
a Lisboa para se meter à socapa num navio. Num sermão, o confessor
descobriu-lhe o intento. Embarcaram nesta segunda armada os infantes
Henrique e João. Duarte e Pedro ficaram no Algarve. O rei de Granada
ultimava, em Gibraltar, uma nova frota, mas quando os granadinos viram a armada
de socorro a entrar no Estreito ficaram quedos». In António Borges Coelho, Largada
das Naus, História de Portugal (1385 – 1500), Editorial Caminho, 2011, ISBN
978-972-21-2464-5.
Cortesia de Caminho/JDACT