sexta-feira, 26 de abril de 2013

O Sonhador Pragmático. Melo Antunes. Maria Manuela Cruzeiro. «Não... embora os meus pais fossem conservadores. O meu pai era particularmente adepto do regime vigente, mas tinha uma formação humanista, que o fazia distinguir entre as opções políticas, digamos assim…»

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Infância, adolescência, formação
Desculpem lá, mas sou capitão!
«Bem, ter de recorrer à memória para desenterrar a infância não é um exercício muito fácil, mas, como creio que se trata de balizar no essencial o que foi a minha história passada, talvez valha a pena referir que ainda muito jovem, isto é, ainda criança, estive em Angola com o meu pai, que era militar, e, por isso, acompanhei a família até lá e acho que esse facto teve importância para mim, porque foram os primeiros anos da escola primária e, portanto, a primeira experiência concreta vivida no contacto com a realidade angolana. Claro que, nessa altura, não tinha consciência do que era a questão colonial, mas tive a vivência do relacionamento com as populações locais, até com os meus colegas de escola. E sempre, ao longo de toda a minha vida, evoquei esses três anos passados em Angola como uma memória muito nítida, que ficou gravada na minha mente. Porque ainda hoje recordo, com nitidez, certos episódios que, embora, como já disse, não soubesse articular teoricamente, foram elementos sensíveis, talvez determinantes , para a formação da minha consciência crítica relativamente à sociedade que me envolvia e às realidades que tinha pela frente. Por exemplo, lembro-me muito bem de uma cena que me impressionou vivamente: assistir ao castigo corporal de um soldado em frente da companhia formada e que, vim a saber mais tarde, era uma punição tradicional, ou seja, a das palmatoadas. Havia umas palmatórias, as chamadas meninas-de-cinco-olhos.

Como na escola primária...
Sim, exactamente. Bem, eu, na escola primária, não assisti a castigos desses, mas vi ser aplicado um na unidade militar a que o meu pai pertencia, e achei-os de uma violência perfeitamente inacreditável, porque eram dezenas de palmatoadas até as mãos ficarem em sangue. Mais tarde, quando fui já pela segunda vez em comissão de serviço para Angola, como capitão, deram-me o comando de uma bataria no Norte de Angola, e quando o capitão que foi rendido por mim me passou os documentos e fez a transição, um dos objectos que me entregou foi também uma menina-de-cinco-olhos...

Ainda nessa altura, ou seja, em 1966, na sua segunda comissão...
Exacto. E isso fez-me muita impressão, porque saltou-me à memória exactamente aquilo que se passara quando eu tinha sete anos. E o meu primeiro contacto com essa bataria foi formar os militares e mandar partir, à frente de todo o pessoal, a tal palmatória, a tal menina-de-cinco-olhos. E ficaram a saber que o estilo de comando seria diferente. Bem, mas, voltando à infância, conservo na memória muitíssimos episódios e lembro-me perfeitamente do que foi a minha vida no interior de Angola, as idas no Verão para a praia, no Lobito ou em Luanda, onde tive perfeita noção do que eram as relações, se quiser, de colonizador e colonizado, naquela época, e até as marcas de racismo que havia nessas relações. E, portanto, acho que isso teve uma importância fundamental na formação da minha consciência.

O ambiente em casa - uma vez que é filho de um oficial do exército, era de aceitação total dessas regras?
Não... embora os meus pais fossem conservadores. O meu pai era particularmente adepto do regime vigente, mas tinha uma formação humanista, que o fazia distinguir entre as opções políticas, digamos assim, de apoio ao salazarismo e as relações humanas. Por isso penso que também terei sido influenciado por essa visão humanista dos meus pais, que muito me ajudou. Posso contar um episódio passado em Quibala, terra do interior de Angola, onde o meu pai estava colocado. Uma vez, lembro-me perfeitamente de ter ido buscar-me à escola, como de costume, um dos criados lá de casa, um dos impedidos, um cuanhama altíssimo, fortíssimo, como são os homens do Sul de Angola, e eu entendi que estava suficientemente cansado para ir às costas dele cerca de um quilómetro e tal, fazendo ele de cavalo e eu de cavaleiro. Quando cheguei a casa, o meu pai zangou-se fortemente comigo. Eu fiz aquilo, de facto, mas era criança, não me dava conta de que era uma violência o que estava a cometer. O que significa que, na realidade, como em muitas outras ocasiões, ele defendia uma relação que não era normal entre colonizador e colonizado, quer dizer, tinha uma visão que o repito, chamo de humanista e que, penso, teve influência na minha formação». In Melo Antunes, O Sonhador Pragmático, Maria Manuela Cruzeiro e Boaventura de Sousa Santos, Histórias da História, Editorial Notícias, 2005, ISBN 972-46-1563-4.

Cortesia de E. Notícias/JDACT