Infância, adolescência, formação
Desculpem lá, mas sou capitão!
«Bem, ter de recorrer à memória para desenterrar a infância não é um
exercício muito fácil, mas, como creio que se trata de balizar no essencial o
que foi a minha história passada, talvez valha a pena referir que ainda muito
jovem, isto é, ainda criança, estive em Angola com o meu pai, que era militar,
e, por isso, acompanhei a família até lá e acho que esse facto teve importância
para mim, porque foram os primeiros anos da escola primária e, portanto, a primeira
experiência concreta vivida no contacto com a realidade angolana. Claro que,
nessa altura, não tinha consciência do que era a questão colonial, mas tive a
vivência do relacionamento com as populações locais, até com os meus colegas de
escola. E sempre, ao longo de toda a minha vida, evoquei esses três anos
passados em Angola como uma memória muito nítida, que ficou gravada na minha
mente. Porque ainda hoje recordo, com nitidez, certos episódios que, embora,
como já disse, não soubesse articular teoricamente, foram elementos sensíveis,
talvez determinantes , para a formação da minha consciência crítica relativamente
à sociedade que me envolvia e às realidades que tinha pela frente. Por exemplo,
lembro-me muito bem de uma cena que me impressionou vivamente: assistir ao castigo
corporal de um soldado em frente da companhia formada e que, vim a saber mais
tarde, era uma punição tradicional, ou seja, a das palmatoadas. Havia umas
palmatórias, as chamadas meninas-de-cinco-olhos.
Como na escola primária...
Sim, exactamente. Bem, eu, na escola primária, não assisti a castigos
desses, mas vi ser aplicado um na unidade militar a que o meu pai pertencia, e
achei-os de uma violência perfeitamente inacreditável, porque eram dezenas de
palmatoadas até as mãos ficarem em sangue. Mais tarde, quando fui já pela
segunda vez em comissão de serviço para Angola, como capitão, deram-me o
comando de uma bataria no Norte de Angola, e quando o capitão que foi rendido
por mim me passou os documentos e fez a transição, um dos objectos que me entregou
foi também uma menina-de-cinco-olhos...
Ainda nessa altura, ou seja, em 1966, na sua segunda comissão...
Exacto. E isso fez-me muita impressão, porque saltou-me à memória
exactamente aquilo que se passara quando eu tinha sete anos. E o meu primeiro
contacto com essa bataria foi formar os militares e mandar partir, à frente de
todo o pessoal, a tal palmatória, a tal menina-de-cinco-olhos. E ficaram a
saber que o estilo de comando seria diferente. Bem, mas, voltando à infância,
conservo na memória muitíssimos episódios e lembro-me perfeitamente do que foi
a minha vida no interior de Angola, as idas no Verão para a praia, no Lobito ou
em Luanda, onde tive perfeita noção do que eram as relações, se quiser, de
colonizador e colonizado, naquela época, e até as marcas de racismo que havia
nessas relações. E, portanto, acho que isso teve uma importância fundamental na
formação da minha consciência.
O ambiente em casa - uma vez que é filho de um oficial do exército, era
de aceitação total dessas regras?
Não... embora os meus pais fossem conservadores. O meu pai era
particularmente adepto do regime vigente, mas tinha uma formação humanista, que
o fazia distinguir entre as opções políticas, digamos assim, de apoio ao
salazarismo e as relações humanas. Por isso penso que também terei sido
influenciado por essa visão humanista dos meus pais, que muito me ajudou. Posso
contar um episódio passado em Quibala, terra do interior de Angola, onde o meu
pai estava colocado. Uma vez, lembro-me perfeitamente de ter ido buscar-me à escola,
como de costume, um dos criados lá de casa, um dos impedidos, um cuanhama
altíssimo, fortíssimo, como são os homens do Sul de Angola, e eu entendi que
estava suficientemente cansado para ir às costas dele cerca de um quilómetro e
tal, fazendo ele de cavalo e eu de cavaleiro. Quando cheguei a casa, o meu pai
zangou-se fortemente comigo. Eu fiz aquilo, de facto, mas era criança, não me
dava conta de que era uma violência o que estava a cometer. O que significa que,
na realidade, como em muitas outras ocasiões, ele defendia uma relação que não
era normal entre colonizador e colonizado, quer dizer, tinha uma visão que o
repito, chamo de humanista e que, penso, teve influência na minha formação». In
Melo Antunes, O Sonhador Pragmático, Maria Manuela Cruzeiro e Boaventura de
Sousa Santos, Histórias da História, Editorial Notícias, 2005, ISBN
972-46-1563-4.
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