A Profecia. D. Teresa e o rei
Afonso Henriques
«Reza a História que a notícia da prisão de D. Teresa chegou a Roma, caindo muito mal junto das altas esferas
da Igreja. Em resposta, o Papa envia a Portugal um emissário encarregue de
levar a Afonso Henriques as
premissas de uma negociação pouco amistosa: ou
libertava de imediato D. Teresa ou o condado seria excomungado. O homem
de tez negra e a quem chamariam bispo atravessou então o Norte de Itália e o
Sul de França, as Hispânias e a fronteira portucalense, entrando em Coimbra já
debaixo de um segredo apenas moderado. A notícia correu rapidamente entre os populares,
receosos das consequências da visita daquele estrangeiro de mau agoiro. O bispo
ter-se-á então dirigido ao Paço e apresentado ao rei as exigências papais, mas
a assinatura do Sumo Pontífice no final da carta não terá bastado para
amedrontar Afonso Henriques. De
pronto, responde ao bispo que, em território portucalense, mandava ele e que
não aceitaria intromissões, nem da Santa Sé.
A decisão estava tomada e não seria alterada. Afonso não deixava
alternativa ao bispo Negro. Ao cair da noite, o forasteiro excomungou a terra,
mas, antes que conseguisse fugir, já a notícia do que acabara de fazer tinha chegado
aos ouvidos do rei. Afonso irrompeu
pela porta da Sé coimbrã, encontrando reunidos os cónegos e outros homens da
Igreja. Cortando em dois um silêncio nervoso, perguntou, gritando, se havia por
ali algum bispo. Um a um, todos foram saindo, até que só restasse um homem: o
estrangeiro de pele negra. Sozinhos diante um do outro, bradou o rei que o
homem lhe celebrasse a missa, dado que era bispo. O outro respondeu que não,
que nunca havia sido nomeado bispo e que, portanto, não o poderia fazer. Como
se já esperasse a resposta, Afonso
Henriques replicou, sem se perturbar, que ele mesmo o nomeava bispo naquele
instante. Agora, terá dito, celebra uma missa. Tremendo de medo,
olhando fundo nos olhos do rei em busca de uma segunda intenção que não
descortinava, Martim Suleima, como
dizem alguns que se chamava, entrou na sacristia, tomou os paramentos de
bispo e tratou de satisfazer, da melhor forma que soube, o desejo de el-rei.
Findo o cerimonial, Afonso Henriques
deixou Suleima partir, para nunca mais Coimbra o ver.
Uma vez mais, os relatos dos acontecimentos no Condado Portucalense correram mundo e chegaram aos ouvidos do Papa.
Henriques tinha ultrapassado todos os
limites. Era um herege, um bárbaro ignorante dos preceitos da fé e, como
tal, tinha de ser ensinado. O caso era grave e, desta feita, a solução não
seria entregue a nenhum pseudobispo, mas a um cardeal. Quando terá ele chegado a terras portucalenses ninguém sabe ao certo.
Tampouco se encontrará quem lhe tenha descrito os traços do rosto. A estada
terá sido muito breve, entrando em Coimbra ainda à luz do Sol e partindo poucas
horas depois, pelo breu da noite. O encontro com o rei redundou no mesmo
resultado: a recusa em libertar D. Teresa.
De modo que, quando todos dormiam, o cardeal saiu percorrendo a ruas,
excomungando aquela terra e todos os que nela viviam. Cumprida a missão, pôs-se
em fuga a galope no mesmo cavalo que o trouxera, escoltado por quatro cavaleiros
levando ouros, pratas e animais.
Contudo, não termina por aqui a lenda, faltava coroá--la com mais um
episódio heróico de Afonso Henriques.
Partindo alegadamente sem o auxílio de quaisquer companheiros, o rei lançou-se
no encalço dos fugitivos. Tê-los-á alcançado poucas horas depois, no lugar
da Vimieira, perto de Poiares, e obrigado a parar. Com uma mão,
arrancou do cavalo o infame cardeal e com a outra desembainhou a grande espada
de cinco ou 15 quilos, conforme. Apavorados, os cavaleiros preveniram-no de
que, se matasse o clérigo, nem ele nem o condado alguma vez teriam o perdão de Roma.
Mas Afonso não queria a cabeça do
cardeal; queria que ele levantasse a excomunhão daquele reino em embrião e que
deixasse ali todo o ouro, prata e animais que levava.
No chão, com os primeiros raios da manha a rebrilharem na lâmina que
tinha junto ao pescoço, o cardeal aceitou todas as exigências. Então, o rei
soltou-o e atirou a espada ao chão, despiu-se por completo, mostrando todas as
feridas e cicatrizes que lhe marcavam o corpo grande, e disse:
- Cardeal, como eu sou herege, bem se mostra pelos sinais das minhas feridas. Estas em tal peleja, e estas em tal cidade ou vila que tomei, e todas por serviço de Deus, contra os inimigos da nossa fé. E para esta tarefa levar avante vos tomo este ouro e prata, porque estou com muita falta deles, e me são necessários para mim e para os meus.
Terminado o discurso, Afonso
vestiu-se, pegou na espada no ouro e na prata, reuniu os animais e partiu. Do
cardeal e dos cavaleiros não houve mais notícia. Terão voltado a Roma, não se
sabe com que resposta. Tudo isto, bispo negro e cardeal, excomunhões e ameaças,
todos os esforços para a libertação da condessa, são, uma vez mais, meramente
lendários. Mas, à margem deles, importa contar um facto e uma história... O
facto: Teresa não morreu certamente na prisão, dado que, ainda naquele ano de 1128, entrou para um convento galego. A
história: diz-se que, antes de o fazer, terá lançado com palavras coléricas uma
maldição sobre o futuro rei de Portugal:
- Dom Afonso, meu filho, prendeste-me e deserdaste-me da terra e honra que me deixou meu pai, e afastaste-me de meu marido. A Deus peço que preso sejais vós, assim como eu me vejo agora. E porque puseste ferros em minhas pernas, que vos ajudaram a trazer e a criar com muitas dores do meu ventre e fora dele, com ferros sejam as vossas pernas quebradas, e praza a Deus que assim seja.
In Alexandre Borges, Histórias Secretas de Reis Portugueses, Casa das
Letras, Lisboa, 2012, ISBN 978-972-46-2131-9.
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