«Algumas semanas antes do casamento um cavalheiro da comunidade católica
de Goa, encontrando-se com o meu pai no Café Nicola, teve o mau gosto de lhe
dizer que Lica certamente já era
casado, pois os hindus casavam sempre enquanto crianças, embora o casamento só
fosse consumado mais tarde. Esta notícia veio causar grande consternação e
demorou algum tempo até compreendermos que tais informações em relação aos
costumes hindus, quando vindas de um goês católico, deixavam algo a desejar. As
duas comunidades viviam estritamente segregadas e histórias narradas sobre
costumes e tradições de parte a parte não passavam, por vezes, de grandes
fantasias.
No registo civil também não foi muito fácil. Insistiram em que no dia
do casamento o noivo apresentasse, como testemunha, uma pessoa que o tivesse conhecido
no seu país de origem. Possivelmente, todas estas precauções eram requeridas,
uma vez que nunca dantes tinha havido um casamento misto como o nosso. Naquela
altura, dos únicos três hindus que residiam em Portugal, dois encontravam-se
ausentes. Felizmente, acabara de chegar a Lisboa um conterrâneo de Lica, Datta Keni, vindo da Alemanha, de
passagem para a Índia. Talvez pudesse ajudar-nos. O convite foi aceite e
imediatamente se fixou o dia do casamento.
A mesa de noivado foi preparada com requinte. A mamã tinha levado toda
a semana a preparar iguarias e a decorar bolos. Na verdade, para além das testemunhas
necessárias e da família próxima, não tínhamos convidados, mas, mesmo assim, a
mamã insistiu em preparar um bom copo-de-água, para depois da cerimónia. Dez e
meia, tempo para nos prepararmos. Vesti o vestido de noiva e olhei-me no
espelho. Fiquei satisfeita com a minha figura e pensei, com um sorriso a aflorar-me
aos lábios: Não está mal...não está mesmo
nada mal... O vestido era de uma seda cinzenta prateada, com um diminuto
desenho de pequeninas flores brancas e enfeitado no decote, à roda do pescoço,
e, a descer para a frente, com uma fina renda branca. As mangas compridas
terminavam também com punhos debruados com a mesma fina renda branca. O cabelo,
que chegava à altura dos ombros, estava agora enrolado à volta da cabeça com a
ajuda de uma madeixa artificial para o acrescentar, como era então a moda.
Ainda não tinha completado a maquilhagem quando Lica chegou, envergando o seu melhor fato. Logo depois chegaram os
padrinhos.
Sentámo-nos todos na sala à espera do funcionário do governo civil que iria
conduzir a cerimónia do casamento. A mamã andava de um lado para outro para se
certificar de que estava tudo em ordem, enquanto as outras pessoas conversavam
animadamente. Eu, porém, permanecia serena, envolta nos meus pensamentos e
infinitamente distante de toda aquela tagarelice. De repente, o som agudo da
campainha da porta soou bruscamente, vibrando por toda a casa. Entrou então o
esperado funcionário do registo civil, trajando um fato escuro de riscas
brancas, com um botão de rosa na lapela.
Dirigimo-nos para o escritório e a cerimónia começou. Lica estava um pouco nervoso. Eu, não
menos, mas em poucos minutos a cerimónia tinha terminado. Estávamos casados. A
minha mãe chorava em silêncio e eu até me sentia quase envergonhada por estar
tão feliz. Cortado o bolo, foi servido o champanhe. Partimos logo a seguir para
Peniche, onde íamos passar a lua-de-mel». In Edila Gaitonde, As Maçãs Azuis. Portugal
e Goa 1948 – 1961, Editorial Tágide, F. Oriente, 2011, ISBN 978-989-95179-9-8.
Cortesia de E. Tágide/JDACT