«Ó país de cristal, que longe eu
estou, dava um ano de ordenado por um momento da minha inocência perdida». In Molero,
a páginas zero.
«Teve uma infância estranha, disse Austin. Em última análise,
todas as infâncias o são, disse mister Deluxe. Molero diz, disse Austin, que a infância do rapaz foi
particularmente estranha, condicionada por questões de ambiente que fizeram
dele, simultaneamente, actor e espectador do seu próprio crescimento, lá dentro
e um pouco solto, preso ao que o rodeava e desviado, como se um elástico o afastasse
do corpo que transportava e, muitas vezes, o projectasse brutalmente contra a
realidade desse mesmo corpo, e havia então esse cachoar violento do que era e a
espuma do que poderia ser, a asa tenra batendo à chuva. O quê?, perguntou
mister Deluxe. É curioso pensar, disse Austin, passando por cima da
pergunta directa, que o rapaz tirava burriés do nariz quando era pequeno, mas
não os comia logo. Hã?, fez mister
Deluxe. Não os comia logo, acentuou Austin, colava-os à parede para os comer no
dia seguinte. Houve uma pausa. Gostava deles secos, explicou. É óbvio,
disse mister Deluxe, não estou a falar dos burriés, estou a falar das
idiossincrasias de Molero.
Debruçou-se sobre a secretária e virou uma folha do calendário de mesa. Ainda
estávamos no dia de ontem, disse ele. Temos várias pistas, disse Austin, um
tabique, uma casca de banana, uma sina, um escarrador, uma tela de Miró, uma mancha
negra debruada a vermelho.
Há passagens do relatório que esclarecem o problema, passagens
aparentemente insignificantes, mas que talvez sejam efectivamente outra coisa,
como o facto de o pai jogar bowling
com garrafas, quando lá no bairro ainda ninguém sabia o que era o bowling, isto depois de beber o conteúdo
das garrafas, eram garrafas de vinho, cerveja , aguardente e o mais que viesse,
ele ficava bêbado e depois jogava bowling
e partia as garrafas com uma grande bola de pratas de chocolates, e o rapaz
ficou sempre com o som nos ouvidos, o som de garrafas partidas enchendo a
noite, um perpétuo estilhaçar de nervos. O pai foi o inventor local do bowling, é isso?, perguntou mister
Deluxe. O pai estava sempre bêbado e jogava bowling com as garrafas vazias,
insistiu Austin, Molero
fixa-se nisto como no elo de uma cadeia, é o que ele diz. Está qualquer coisa a
arder no cinzeiro, disse mister Deluxe. É papel, disse Austin, apagando
apressadamente o cigarro. Molero
detém-se numa tia que lhe comprou um aparelho pata endireitar os dentes, continuou
ele, os outros rapazes ainda se riram um pouco por causa disso, um aparelho
daqueles estava deslocado no meio ambiente, ali os dentes tortos cresciam em
perfeita liberdade.
Hum, fez mister DeLuxe. Há muito mais, disse Austin, havia um
amigo da família que tinha o Rato Mickey
tatuado no peito e que pedia ao rapaz para bater na tatuagem, bate com força,
com mais força, agora uma esquerda, agora uma direita, mete um crochet, mete um
uppercut. Sim, sem dúvida
alguma, disse mister Deluxe, o Rato Mickey tornou-se um mito. Austin pareceu
não ouvir bem. Como?, perguntou.
Mister DeLuxe fez um gesto vago com a mão. Cá
está, disse Austin, folheando o relatório, publicou um artigo
mobilizador, com uma grande riqueza de substantivos, numa prosa económica,
medida, sempre poética, bastante peneirada na opinião de Molero, o artigo foi publicado num jornal, o director tinha-o
achado um pouco venenoso mas passava, depois apareceram problemas por causa
disso, muita gente foi atingida, foi uma daquelas limpezas radicais que até
põem em causa o miúdo que leva as provas à tipografia, o director foi despedido
despedindo-se, fez o pedido de demissão alegando motivos de saúde, parece que
ele tinha mesmo uma bronquite levada da breca. Mister DeLuxe franziu, a testa. Quem é que despediu o director?
perguntou. Outros directores, disse Austin, da Comissão de Estudos da
Degeneração, da Sagrada Missão do Sul, do Comércio das Laranjas e de outros
organismos não menos conceituados e prudentes, o artigo é acintoso, disseram
todos à uma, nunca se viu tamanho acinte, este é o acinte tout court». In Dinis Machado, O Que Diz Molero, Livraria
Bertrand, Amadora, 1977.
Cortesia de Bertrand/JDACT