segunda-feira, 8 de abril de 2013

Crónica do Rei Pasmado. Gonzalo Torrente Ballester. «Frei Eugénio de Rivadesella chegou deitando os bofes pela boca, ou, pelo menos, foi o que disse, pois o santo titular da sua ordem não se tinha lembrado de inventar, para os dias cálidos, um hábito mais ligeiro…»

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«O Rei saiu, carregado com as chaves, cujo tilintar enchia a penumbra. Atravessou salas e passadiços, abriu com a chave mais grossa a porta maior e fechou-a por dentro: tinha entrado num dédalo de corredores ziguezagueantes, interrompidos por escadas que subiam e escadas que desciam. Teve que abrir, ainda, mais duas portas, que também fechou depois de as ter transposto. A sala proibida correspondia a uma torre, a do nordeste. Estava às escuras. Às apalpadelas, encontrou uma janela e abriu-a. A sala não tinha móveis, mas das paredes pendiam quadros.
Quando os seus olhos se habituaram à luz escassa, pôde ver que em todos eles havia mulheres nuas, sozinhas ou em companhia. Encontrava-se diante das mitologias que seu avô tinha coleccionado, e que só podiam contemplar-se com uma autorização especial da cúria toledana, assinada pelo punho e letra do primaz: privilégio deste que o Inquisidor-mor lhe disputava e que, como pleito dos que jamais se resolvem, se encontrava em Roma havia lustros. Por sorte, o outro Rei, seu pai, nunca tinha penetrado naquele local, pois de contrário o pleito teria sido decidido pelo fogo.
 - Os teólogos mais subtis, Majestade, têm dúvidas de que seu avô, o Grande Rei, se tenha salvo, só por ter gasto o dinheiro do povo nestas porcarias. As porcarias assinavam-nas, entre outros, Ticiano e um estranho holandês chamado El Bosco, e –Hierombosc, segundo as cartas do avô às suas filhas mui amadas. O Rei percorreu com o olhar aquela acumulação de corpos ao relento e deteve-se num, onde uma velha alcoviteira recolhia no regaço da sua saia o ouro que Zeus lançava à entreperna de Dafne, a qual, no entanto, algum ouro devia receber no sítio preciso, a julgar pela cara que fazia. Dafne tinha umas coxas esguias e um corpo dourado, semelhante ao de Marfisa. O Rei ficou diante dele, como pasmado, durante muito tempo.

Frei Eugénio de Rivadesella chegou deitando os bofes pela boca, ou, pelo menos, foi o que disse, pois o santo titular da sua ordem não se tinha lembrado de inventar, para os dias cálidos, um hábito mais ligeiro, de maneira que o Inquisidor-mor teve de acudir ao seu sufoco e pedir urgentemente que lhe trouxessem um refresco eficaz, dos que guardavam para estes casos no fundo do poço. Com ele, e com uma aguardente que se lhe seguiu, o padre Rivadesella ficou bastante tratável, embora continuasse a cheirar a suor, coisa que incomodava o prelado. Mas ofereceu-o em sacrifício pelo perdão dos seus pecados, e passou ao frade o texto do relatório que lhe tinha trazido naquela mesma manhã o pároco de São Pedro.
 - Que pensa Vossa Paternidade dessas notícias? Do padre Rivadesella sabia-se nas altas esferas da cúria e da Santa Inquisição (maldita) que todas as tardes, ao cair a luz, recebia o Maligno e mantinha com ele saborosas conversas, que se aplicavam depois à maior glória de Deus e da monarquia. O padre Rivadesella, depois de pôr as lentes, que alguém lhe tinha trazido da Holanda, fabricadas certamente por hereges, mas de muito boa visão, meteu-se na leitura e não levantou a vista antes de ter percorrido a última linha: por sorte, a letra miúda do pároco era das claras e legíveis. - Fi-lo vir cá tão de manhãzinha, reverendo padre, para ouvir o seu perecer acerca do que se diz nesses papéis. Vossa Reverência é a única pessoa da corte em cuja opinião me posso fiar, dada a sua conhecida amizade com o Inimigo do género humano e de Deus Nosso Senhor.
 - Eu não diria amizade, Excelência, mas antes mera relação. - Com as lentes na mão, brincando com elas, o padre Rivadesella acrescentou: - Por agora, Excelência, é a primeira notícia que tenho destes acontecimentos. Por outro lado, devo dizer que, no crepúsculo de ontem, Satanás faltou ao seu encontro comigo. Costumo esperá-lo debaixo de uma azinheira que temos no pátio, de copa tão frondosa que tudo oculta e rudo tapa, de maneira que, sentado debaixo dela, ninguém vislumbra nem as cruzes nem as suas sombras. Satanás sente-se incompatível com umas e com outras, como é sabido. Mas ontem não compareceu, e esperei por ele até tarde, entretendo-me com o fumo dessa erva que se traz das Índias e a que chamam tabaco. Recomendo-lha para as tribulações». In Gonzalo Torrente Ballester, Crónica del Rey Pasmado, Crónica do Rei Pasmado (Scherzo em re(i) maior alegre, mas não demasiado), Editorial Caminho, 1992, ISBN 972-21-0708-9.

Cortesia da E. Caminho/JDACT