«O Rei saiu, carregado com as chaves, cujo tilintar enchia a penumbra.
Atravessou salas e passadiços, abriu com a chave mais grossa a porta maior e
fechou-a por dentro: tinha entrado num dédalo de corredores ziguezagueantes, interrompidos
por escadas que subiam e escadas que desciam. Teve que abrir, ainda, mais duas
portas, que também fechou depois de as ter transposto. A sala proibida correspondia
a uma torre, a do nordeste. Estava às escuras. Às apalpadelas, encontrou uma
janela e abriu-a. A sala não tinha móveis, mas das paredes pendiam quadros.
Quando os seus olhos se habituaram à luz escassa, pôde ver que em todos
eles havia mulheres nuas, sozinhas ou em companhia. Encontrava-se diante das
mitologias que seu avô tinha coleccionado, e que só podiam contemplar-se com
uma autorização especial da cúria toledana, assinada pelo punho e letra do
primaz: privilégio deste que o Inquisidor-mor lhe disputava e que, como pleito
dos que jamais se resolvem, se encontrava em Roma havia lustros. Por sorte, o
outro Rei, seu pai, nunca tinha penetrado naquele local, pois de contrário o
pleito teria sido decidido pelo fogo.
- Os teólogos mais subtis, Majestade,
têm dúvidas de que seu avô, o Grande Rei, se tenha salvo, só por ter gasto o
dinheiro do povo nestas porcarias. As porcarias assinavam-nas, entre outros,
Ticiano e um estranho holandês chamado El Bosco, e –Hierombosc, segundo as cartas
do avô às suas filhas mui amadas. O Rei percorreu com o olhar aquela acumulação
de corpos ao relento e deteve-se num, onde uma velha alcoviteira recolhia no
regaço da sua saia o ouro que Zeus lançava à entreperna de Dafne, a qual, no
entanto, algum ouro devia receber no sítio preciso, a julgar pela cara que
fazia. Dafne tinha umas coxas esguias e um corpo dourado, semelhante ao de Marfisa. O Rei ficou diante dele, como pasmado,
durante muito tempo.
Frei Eugénio de Rivadesella chegou deitando os bofes pela boca, ou,
pelo menos, foi o que disse, pois o santo titular da sua ordem não se tinha
lembrado de inventar, para os dias cálidos, um hábito mais ligeiro, de maneira
que o Inquisidor-mor teve de acudir ao seu sufoco e pedir urgentemente que lhe
trouxessem um refresco eficaz, dos que guardavam para estes casos no fundo do
poço. Com ele, e com uma aguardente que se lhe seguiu, o padre Rivadesella
ficou bastante tratável, embora continuasse a cheirar a suor, coisa que
incomodava o prelado. Mas ofereceu-o em sacrifício pelo perdão dos seus
pecados, e passou ao frade o texto do relatório que lhe tinha trazido naquela
mesma manhã o pároco de São Pedro.
- Que pensa Vossa Paternidade
dessas notícias? Do padre Rivadesella sabia-se nas altas esferas da cúria e da
Santa Inquisição (maldita) que todas as tardes, ao cair a luz, recebia o
Maligno e mantinha com ele saborosas conversas, que se aplicavam depois à maior
glória de Deus e da monarquia. O padre Rivadesella, depois de pôr as lentes, que
alguém lhe tinha trazido da Holanda, fabricadas certamente por hereges, mas de
muito boa visão, meteu-se na leitura e não levantou a vista antes de ter
percorrido a última linha: por sorte, a letra miúda do pároco era das claras e
legíveis. - Fi-lo vir cá tão de manhãzinha, reverendo padre, para ouvir o seu
perecer acerca do que se diz nesses papéis. Vossa Reverência é a única pessoa
da corte em cuja opinião me posso fiar, dada a sua conhecida amizade com o Inimigo
do género humano e de Deus Nosso Senhor.
- Eu não diria amizade,
Excelência, mas antes mera relação. - Com as lentes na mão, brincando com elas,
o padre Rivadesella acrescentou: - Por agora, Excelência, é a primeira notícia
que tenho destes acontecimentos. Por outro lado, devo dizer que, no crepúsculo de
ontem, Satanás faltou ao seu encontro comigo. Costumo esperá-lo debaixo de uma
azinheira que temos no pátio, de copa tão frondosa que tudo oculta e rudo tapa,
de maneira que, sentado debaixo dela, ninguém vislumbra nem as cruzes nem as
suas sombras. Satanás sente-se incompatível com umas e com outras, como é sabido.
Mas ontem não compareceu, e esperei por ele até tarde, entretendo-me com o fumo
dessa erva que se traz das Índias e a que chamam tabaco. Recomendo-lha para as
tribulações». In Gonzalo Torrente Ballester, Crónica del Rey Pasmado, Crónica do Rei
Pasmado (Scherzo em re(i) maior alegre, mas não demasiado), Editorial Caminho,
1992, ISBN 972-21-0708-9.
Cortesia da E. Caminho/JDACT