«Sensíveis, inteligentes e refinadas, se o que sobressaía em Inês era a luminosidade e o calor do
amanhecer, em Constança era a serenidade e o recolhimento do ocaso. E, talvez
por isso, a ligação entre ambas ia-se tornando mais forte em cada dia que
passava. Às brincadeiras, sucederam-se as confidências, ao estudo das línguas
clássicas e das artes, os mistérios da vida, e, à rivalidade de ser mais ágil ou
atrevida, a sadia capacidade de despertar a atenção dos jovens que frequentavam
o castelo. A vida nos domínios do senhor de Peñafiel não podia ser classificada
de monótona. Nos quase sete anos em que Inês viveu ali, o infante João
Manuel, por causa da política e das obrigações da guerra, teve de se
afastar com frequência das suas terras mas, quando regressava, os bailes e as
festas alternavam com justas e torneios que atraíam a atenção de todo o povo.
Nas ausências dele, Constança e Inês tampouco
se aborreciam. Os seus dias eram ocupados com rezas, estudos, bordados, música
e excursões pela veiga. Ali perseguiam borboletas e colhiam flores com que construíam
coroas, que ofereciam uma à outra. Constança, mais sossegada, gostava
de leitura e bordados, enquanto Inês
preferia desenhar ou cavalgar, com a liberdade própria de um rapaz, pelo parque
do castelo ou seguindo o curso do Duratón até este desaguar no Douro.
Ambas tinham, porém, um gosto comum: assistir ao trabalho dos calígrafos que,
na esplêndida biblioteca do castelo, adornavam com belas cores os livros do seu
senhor.
Naquele dia de 1337, Constança
e Inês foram até ao escritório, como
tinham feito tantas vezes. Foram surpreendidas pela pressa de copistas e
desenhadores. Um deles, um frade dominicano, que também atendia as necessidades
espirituais dos habitantes do castelo, explicou-lhes o motivo de todo aquele
alvoroço. Tinham de acabar uma primorosa cópia do Libro de los Enxiemplos, a última obra do infante João
Manuel. Este exemplar ia ser oferecido ao monarca português, Afonso IV e,
por isso, o resultado final da edição devia estar à altura de tão alto
soberano. Na manhã seguinte, continuou o frade a informar, Duarte de Oliveira,
o gentil-homem português que, como sabiam, passara as duas últimas semanas alojado
no castelo, partiria para Lisboa juntamente com o seu séquito e tinha de levar
o livro com ele. Segundo se dizia, o cavaleiro e o infante tinham chegado a
acordo acerca dos graves assuntos que o português viera tratar.
Inês, mais desenvolta e sem
reparar nas dificuldades que tinha o bom do frade para fixar a lãmina de oiro
com que enchia as volutas de uma complicadíssima letra maiúscula, perguntou ao
informador se ele sabia que negócios eram esses que mereciam que o embaixador Duarte
levasse tão valioso presente ao soberano do país vizinho. O monge, depois de
lhe rogar que não o distraísse, pois a tarefa exigia toda a sua atenção,
respondeu: - Não sei, D. Inês, mas
não seria de estranhar que, havendo nesta casa uma moça como D.
Constança e estando por casar o herdeiro do trono português, o
embaixador Duarte de Oliveira fosse despedido com repicar de sinos a anunciar
boda. Inês olhou para Constança.
Antes que pudesse responder, a amiga adiantou-se. – Estais equivocado,
frei Gonzalo. Quem iria querer-me depois de ter sido desprezada pelo rei de
Castela? - Não há outra moça casadoira nesta casa - interveio Inês. - A vossa irmã, D. Juana, tem
apenas um ano e não creio que o infante de Portugal queira esperar tanto tempo.
- Quedais vós, minha senhora D. Inês
- acrescentou o frade. - Eu? Que desvario, meu bom frade! Como é que o príncipe
Pedro podia reparar em mim? Como iria o herdeiro de tão alta coroa reparar em
quem chegou a esta casa para aliviar a miséria da sua própria família? Como me
iria converter em rainha se, a despeito
do casamento precipitado dos meus pais, arrasto comigo uma sombra de bastardia?
- Inês, não sejais modesta - pediu Constança, a emendar a amiga.
- Sabeis que o vosso pai é segundo
primo de Afonso de Portugal. Se a isso acrescentardes as vossas
qualidades e a vossa beleza, não careceis de mais prendas para serdes digna de
um príncipe. E, além disso, o meu pai não vos negaria um bom dote. O frade
voltara ao seu trabalho. Inês e Constança,
seguidas a distância prudente pelas respectivas amas, continuaram a conversa durante
o caminho de regresso aos seus aposentos. Por momentos, Inês deteve-se junto a uma ogiva da galeria que comunicava com a ala
privada do castelo. Constança apreciou a beleza da amiga». In Inês de Castro, María Pilar
Queralt de Hierro, Editorial Presença, Lisboa, 2006, ISBN 978-972-23-3081-7.
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