«O rei Manuel, ao invés de disponibilizar navios no Porto, em Lisboa e
no Algarve, para a saída dos judeus do reino, determinou a sua concentração em
Lisboa, garantindo-lhes o embarque para o estrangeiro. Cerca de 20000 judeus
provenientes de todo o país acabariam por ser conduzidos ao Palácio dos Estaus,
futura sede da Inquisição (maldita). Esfomeados, sedentos e encurralados em
espaço exíguo, à espera dos prometidos navios, seriam, no entanto, visitados
por dois irmãos convertidos, mestre Nicolau, futuro médico da rainha D. Isabel,
esposa de Manuel I e Pedro de Castro, eclesiástico em Vila Real, dispostos a
baptizá-los. Impossibilitados de saírem livremente do país, conforme fora
prometido no Édito do ano anterior, seriam levados aos milhares às igrejas mais
próximas e benzidos apressadamente contra sua vontade.
Mesmo os mais velhos e indefesos judeus foram arrastados pelos cabelos
até à pia baptismal, preferindo alguns deles atirar-se aos poços e cisternas,
numa inesquecível cena apocalíptica, que vários cronistas registariam. Não
passaria muito tempo até que o rei Manuel exarasse nova portaria, desta vez para
proteger os judeus, que ele bem sabia não se terem efectivamente convertido ao
cristianismo, apenas os haviam obrigado a sê-lo formalmente, de forma a
preservá-los no futuro, pouco importando se continuariam a judaizar ou não. Com
efeito, a portaria de 30 de Maio de 1497
estipulava que ninguém poderia inquirir os cristãos-novos sobre matéria
religiosa durante um período de vinte anos. Tratava-se de uma verdadeira
amnistia geral, duma formalidade que preservava os judeus sem judaísmo
declarado mas consentido.
Compreensivelmente, os judeus, que já haviam sido expulsos de Espanha e
estavam agora a ser aprisionados em Portugal, não acreditaram na sinceridade
desta medida e trataram de abandonar o nosso país mal puderam, com suas
famílias e bens. Os mais abastados, antes de saírem, negociavam letras de
câmbio com os cristãos, para serem trocadas noutros países. Detectada esta
astuciosa artimanha hebraica, o rei aprovaria medidas que contrariavam a
estratégia económica e a finalidade migratória, através de dois alvarás de 1499: o de 20 de Abril, que proibia os
negócios com judeus, e o de 21 de Abril, que impedia a saída do reino de
conversos de 1497, sem licença régia,
ambos sob pena de perda dos bens dos infractores. Apesar destas medidas, um
considerável número de judeus terá conseguido evadir-se da prisão lusa,
subornando alguns zelosos cristãos.
Da expulsão ao estabelecimento
da Inquisição
O massacre judaico de Lisboa de 1506
No entanto, o pior estava ainda para vir. O primeiro sinal dos tempos
difíceis que se temiam foi o famigerado massacre judaico de 1506, que teve início no dia 19 de
Abril, domingo de Pascoela
cristã e que prolongou por mais dois dias. O clima que se vivia então em Lisboa
era deplorável: a peste assolava a capital
desde Outubro do ano anterior, situação dramaticamente ampliada pela seca e
pela fome. O rei Manuel I refugiara-se em Abrantes. As ruas exibiam os
horrores da tragédia. Naquele dia, o convento de São Domingos estava repleto de
desesperados cristãos, velhos e novos, esperando um sinal divino que
acudisse àqueles que não tinham posses ou condições de fuga. Constava que um
milagre se manifestara, no dia 15
desse mês, naquele templo dominicano. A vontade de crer era demasiado forte
para descrer em qualquer sinal, por pequeno ou inacreditável que fosse. A
predisposição faz a ocasião. Era a única esperança. Não se podia desperdiçar
uma fugaz manifestação divina. E aconteceu. O sinal implorado com toda a convicção
repetiu-se. Uma luz brilhou, incandescente, no crucifixo da capela da igreja.
Todos viram. Todos rejubilaram. Todos se sentiram recompensados pela crença
profunda e sincera. Todos? Não.
Na verdade, houve um que ousou duvidar da natureza divina da luz. Teria
sido o reflexo de uma das muitas candeias acesas naquele convento, para chamar
a atenção do Omnipotente. Incautamente, proferiu as palavras proibidas, indesejadas,
demolidoras da esperança compensada. Era um cristão-novo. Heresia! Naquele domingo de Pascoela
de 1506, apenas nove anos após a
conversão forçada de milhares de judeus portugueses, decretada por Manuel I, já
não se podia ser judeu, era-se cristão-novo oficial e criptojudeu de convicção.
Mas, quem, em menos de uma década deixa de ser o que é, para ser aquilo a que o
querem forçar? Muitos deles, quiçá a maioria, ter-se-ão tornado judeus
secretos, com todos os perigos que isso implicava». In Breve História dos Judeus em
Portugal, Jorge Martins, Nova Vega, colecção Sefarad, 2011, ISBN
978-972-699-920-1.
continua
Cortesia de Nova Vega/JDACT