Irmãos, divididos pelo ódio e pela cobiça, guerreiam-se furiosamente
«Não ligando importância a seu irmão Garcia, que continuava a governar
a Galiza e o território que mais tarde constituiria o norte de Portugal, Sancho
volveu-se contra D. Urraca, que se mostrara parcial do monarca vencido,
chegando até a favorecer-lhe a evasão. Declarou-lhe guerra e sitiou Samora,
que, resistindo desesperadamente, não capitulava. Foi durante este cerco que um
sucesso imprevisto pôs subitamente fim ao conflito. Belido Arnulfes,
cavaleiro de Samora, avistando um dia o monarca de Castela a passear, só e descuidado,
diante das muralhas da cidade, partiu das barreiras a toda a brida, correu
contra ele e, ferindo-o mortalmente com uma lançada, regressou incólume às fortificações.
Esta morte mudou por completo a feição política daqueles reinos. D.
Urraca enviou logo mensageiros a toda a pressa a seu irmão Afonso, aconselhando-o
a que corresse imediatamente a ocupar o trono de Castela que ninguém lhe
disputaria, porque Sancho morrera sem sucessão. Com efeito, Afonso,
dirigindo-se a Samora, foi ali reconhecido pelos barões de Leão e da Galiza. E
empunhando o ceptro, iniciou o seu governo, sem que os grandes senhores, por
via de regra tão turbulentos, lhe fizessem a menor obstrução.
Luta obstinada pela
Independência
Os condes Raimundo e Henrique firmam aliança secreta para se apoderarem
da herança de Afonso VI
Como referimos, Afonso VI, ao saber que Iussuf, o grande emir de
Marrocos, passava à Península com um numeroso e aguerrido exército, tratara de
reunir o maior número possível de forças cristãs que pudessem resistir com
êxito ao embate muçulmano, que se previa violentíssimo. Para o conseguir, em
fins de 1079 e princípios de 1080, chamou em seu auxílio o monarca
Sancho, rei de Aragão, levantou grandes contingentes de guerreiros na Galiza,
Astúrias, Leão e Castela, e ainda fez aliciantes convites a nobres cavaleiros
do sul da França, que compareceram seguidos dos seus homens de armas, que, ao
uso da época, vinham não só desejosos de derrotar os maometanos, inimigos da
sua fé, mas também de se enriquecerem com despojos valiosíssimos, pois os
Árabes costumavam pelejar adornados das suas jóias mais preciosas.
Ora, entre os nobres cavaleiros franceses, que acudiram ao apelo do rei
de Leão e Castela, dois podiam considerar-se da melhor estirpe. Um chamava-se Raimundo e era filho de
Guilherme I, conde de Bolonha, e o outro, de nome Henrique, era quarto filho de
Henrique, irmão da esposa de Guilherme I de Bolonha e neto de Roberto, duque de
Borgonha e irmão de Henrique II, rei de França. Em paga dos serviços
que estavam prestando na guerra contra as forças consideráveis de Iussuf,
em que aliás não levaram o melhor partido, Afonso VI deu a Raimundo sua filha
legítima D. Urraca em casamento, tornando-o senhor de toda a Galiza, que nessa
data englobava a parte da Lusitânia constituída pelos distritos de Coimbra e
Portucale. Por sua vez, Henrique, conde de Borgonha, em atenção ao valor do seu
auxílio, obteve a mão de Tarásia ou Tareja (Teresa, pela pronúncia actual) que era
filha ilegítima do mesmo monarca e de uma nobre dama chamada Ximena Muniores
ou Nunes.
De início, o território governado
por Henrique limitava-se a uma acanhada faixa, que tinha a cidade de Braga por
cabeça. De como a breve trecho se dilatou desde o Minho ate o Tejo não o pôde a
história averiguar com precisão, por falta de documentos. Sabe-se, no
entanto, que deixou de fazer parte da Galiza, onde governava Raimundo, e
depreende-se que duas razões fortes levaram Afonso VI a dividir aquele vasto domínio
pelos dois primos gauleses:
- a primeira, pela dificuldade que Raimundo teria em administrar e defender toda a província ocidental, ficando a sede do seu governo a enorme distância das raias mouriscas;
- a segunda, pelo descontentamento causado pelos desaires sofridos por Raimundo na luta contra os muçulmanos do sul. E parece que foi esta a razão mais forte que influiu o monarca de Leão e Castela a confiar a Henrique, em 1095, o governo do território que se estendia desde o rio Minho até o Tejo.
Se não, rememoremos os factos que criaram a Raimundo a situação
desairosa que tanto desagradou ao seu rei e sogro. No início da campanha, que
levaria o emir de Marrocos a dominar todos os Estados muçulmanos da Península,
como aliás estes tanto receavam,
Seyr, obedecendo aos desejos de Iussuf, em 1093, invadiu os territórios do emir de
Badajoz, que, por essa época, incluíam todo o Al-Gharb, ou ocidente da
Península, até a fronteira cristã. Renderam-se-lhe Évora (Jéborah), Silves (Chelb)
e outras cidades. Submetida esta província, Seyr volvera-se contra Rui
Dias, que então sitiava Valência. Entretanto, o conde Raimundo descera
da Galiza até Coimbra e, na Primavera seguinte, marchando mais para o sul,
viera assentar arraiais nas proximidades de Lisboa. Por descuido ou imperícia,
não contou com os Mouros, que, saindo-lhe ao encontro, lhe infligiram a derrota
que tanto contrariou o monarca, decidindo-o a entregar ao conde Henrique o
extenso território que ia desde o Minho até Santarém, na margem direita do
Tejo.
As boas disposições de Afonso VI para com o genro Henrique inferem-se
do facto de, ao mesmo tempo que o casara com a sua filha bastarda D. Teresa e lhe
confiava o governo da província portucalense, ou portugalense, outorgava aos
dois cônjuges, como bens próprios e hereditários, as propriedades realengas do mesmo
território. Foi este o dote que D. Teresa levou em casamento, conforme se
depreende da crónica anónima do rei de Leão. Não serão muitos os documentos que
nos elucidem acerca da vida do conde Henrique. Sabe-se que os primeiros anos do
seu governo foram relativamente calmos, fruindo as delícias do matrimónio
recente, apenas, por vezes, interrompidas pelas habituais correrias e devastações
que Mouros e cristãos mutuamente se brindavam nas proximidades dos respectivos
domínios. A luta que se travava entre os próprios maometanos permitia uma certa
folga às populações e às hostes da Cristandade. Por essa época, sucediam-se as
escaramuças e batalhas entre as forças muçulmanas da Península e os exércitos
de Iussuf, que acabaram, como se sabe, por impor o domínio africano a
toda a Espanha sarracena.
O condado portucalense abrangia grande parte das terras da antiga
Lusitânia e não há notícia de que os povos manifestassem descontentamento
contra Henrique. Este, por seu turno, que saíra de França simples cavaleiro e
agora se sentia quase soberano de um país tranquilo, parecia achar-se contente
com a sua sorte. Em 1097 e 1098, foi em peregrinação a Santiago de
Compostela, e em 1100 e 1101 ainda residia na corte de Afonso
VI, que já se intitulava imperador». In Mário Domingues, D. Afonso Henriques, Evocação
Histórica, edição da L. Romano Torres, Lisboa, 1970.
continua
Cortesia de Romano Torres/JDACT