Cogito
«Em segundos, com a mão ossuda pousada no ombro de Astor, Dulcineia viu
um baralho enorme de cartas acasteladas no seu passado sombrio. Ao reconhecer
Astor, depois da vertigem do engano, riu. Deu gargalhadas de paquiderme, com o
diafragma aos pulos, sem olhos de recriminação na alma, antes tardes infindáveis
de esquecimento, e a rir desesperava por mostrar em prova medíocre os seus
desgostos. E riu tanto que, quando parou, tropeçou na atrapalhação de explicar-se
porque ria. Astor, que a princípio parecia fascinado, ganhou coragem para se
despegar dela. Atirou-a num empurrão para o outro lado da sala. Dulcineia
voltou ao sonambulismo de cadáver precoce, transportando as pantufas e a nudez
de árvore para a cozinha, readquirindo o assobio e a apatia.
Astor olhou, nervoso, o quintal através da veneziana corrida. O gato
sorria, limpando os beiços dos restos da ratazana morta e Astor juraria que o
gerânio gritava, algemado no vaso de barro, implorando um bambu de ponta
aguçada para se defender das ervas mais daninhas. Para se distrair, Astor
voltou os olhos para o laboratório do pai. Uma fumaça lilás saía das frinchas
múltiplas da porta. Um dia, Agnelo não sairia vivo do laboratório, pensou
Astor. E esta era uma obstinação pior que as anteriores e Astor quis esmagá-la
a saída do útero da imaginação, espetá-la com os dentes de uma forquilha anónima,
para que ali ficasse irremediavelmente sem préstimo.
Ao visitar certa vez o laboratório, o que mais atraíra Astor fora a
claridade decrépita que entrava pela clarabóia atafulhada de anos, sem mais
desígnios que os piparotes de ânimo tirados dos poços de entulhos
coleccionados. As paredes destruídas a bicadas de aves poderosas e em furor, oferta
da Avó em certo tempo, quando o pai se revoltara contra a escuridão e
conquistara uma claridade reconfortante, até se ver aprisionado numa superfície
de vida, escorriam numa acidez decomposta. Para além da desmesurada retorta, a encimar
a bancada estreita de tão repleta, era o longo corredor que mais chamava a
atenção, reinando numa letargia pacata, imenso cogumelo cor de tijolo seco.
Durante dezasseis anos, o pai de Astor, Agnelo, viveu isolado do mundo,
no espaço do pequeno laboratório, exíguo para a sua criatividade, que instalara
a custo e pelos seus próprios meios no fundo do quintal. Ali buscara, durante
dezasseis anos, uma fórmula fulminante para varrer todas as espécies,
conhecidas e raras, de baratas da face da terra. Ao fim de dezasseis anos, tiraram-no
em braços do laboratório, intoxicado pelos estranhíssimos pós que lidava. Desde
essa altura ficara fosforescente. À noite, quando as luzes se apagavam, o pai
de Astor brilhava no escuro. Ao regressar a casa, depois de longo tratamento,
período em que a Avó se limitava a ignorar a dor familiar de o ver assim,
parecia curado da obcecação das experiências científicas». In Alexandre Honrado, O Príncipe
Perdido, colecção O Chão da Palavra, Vega, Lisboa, 1986, ISBN 978-972-699-155-7.
Cortesia de Vega/JDACT