«A herança era, provavelmente, pesada, complexa para um monarca sem
experiência de governo, e o panorama francês do tempo, não era animador para
lhe facilitar a missão. Três partidos igualmente fortes e coesos, irreconciliáveis,
dividiam vincadamente a população do país, impossibilitando uma boa e sã
administração e dificultando a sua necessária homogeneidade:
- Os Huguenotes reconheciam por seu único chefe o Príncipe Henrique de Navarra, que seria o próximo monarca da França, sob o título de Henrique IV!
Os Realistas, em que se incluíam todos os Católicos moderados e
a que estavam igualmente aliados os Protestantes morigerados, obedeciam
ao duque de Alençon, irmão do rei, e apoiavam Henrique III. Por último,
os Católicos fanáticos, exaltados, reuniam-se sob a bandeira do duque de
Guise, Henrique I, da Lorena. Com tão poderosos e ardorosos partidos lutando
pelo domínio político e a imporem os seus pontos de vista irredutíveis, não
admira que as dificuldades pusessem muita vez em cheque não só a boa vontade do
soberano para com os seus súbditos, como, propriamente, a sua autoridade e as
prerrogativas da coroa.
No primeiro ano do seu reinado, não passaram as escaramuças, entre
todos, de simples intrigas com maior ou menor projecção na vida nacional. O
ponto nevrálgico das questões não havia ainda chegado a um estado agudo,
parecendo que os adversários se espreitavam mutualmente, espiando-se na sua
fraqueza e propósitos e auscultando as reacções das partes contrárias. Fosse
como fosse, nesses meses iniciais e por uma espécie de acordo táctico, as
divergências, mas unicamente no seu carácter bélico, estiveram aquietadas, sem
exteriorizações ruidosas, embora no fundo refervessem em cachão, prontas a
explodirem em fúria ao primeiro sinal de rebate.
Neste ambiente de ilusória tranquilidade se efectuaram, em 1575, os espaventosos esponsais do rei Henrique
III com a jovem e inteligente Luísa, filha do conde de Vandemont, da casa
de Lorena, casamento que satisfazia a população, atendendo a que era uma
francesa que ia ocupar o tálamo real e, também, pela aliança entre duas das
mais altas casas do reino. A época era,
contudo, de características religiosas
profundas, enraizadas na alma popular,
e a aparente concórdia de tão díspares agrupamentos dentro do país, cada um dos
quais imaginando-se com mais distintos direitos do que os outros, não levou
muito tempo a ser completamente reduzida a nada.
A França continuaria na luta de agonia que esteve em riscos de a
perder, e Henrique III ia começar a sofrer os tremendos efeitos de tais
contendas. Os Realistas, exactamente a sua facção, não viram com bons
olhos a afabilidade do rei para os Huguenotes e foram os primeiros a romper as hostilidades,
levantando-se, de armas na mão, contra o statu
quo. O monarca vê-se compelido a participar na contenda, de difícil
solução, que lhe ameaçava o trono. Mais uma vez surgia a guerra interna com todos
os descalabros e malefícios. Depois de alguns combates em que a sorte nem
sempre sorriu ao soberano, foi este forçado a assinar a paz, que ficou sendo
conhecida pela paz de Loches ou de Beaulieu, em condições que a
história considera honrosas, mas que teve duração precária.
Compreender-se-á melhor este agitado período da
vida da França ao saber-se que cada um dos chefes de partido era tão poderoso
como o próprio rei, tendo a sua corte própria, não inferior à do monarca, e
dispondo de forças organizadas, numerosas, leais e devotadas à causa por que se
batiam. Não havia o que se pode chamar unidade nacional e, muito menos, a
obediência disciplinada a um único poder. Os vassalos, irrequietos e omnipotentes
nos seus Estados, não raramente se levantavam em atitude bélica contra o rei e
senhor, vencendo-o nos campos de batalha. Ora, pela paz de Loches, se o
monarca coagido deixava satisfeita a facção huguenote pelas concessões que lhes
fazia, irritava a parre contrária, que se julgou ferida nos seus sentimentos
mais íntimos». In Américo Faria, Dez Monarcas Infelizes, Livraria
Clássica Editora, colecção 10, Lisboa, s/d.
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