«E esta foi a causa por que os deixaram sair do reino com seus filhos,
e aos judeus não. A verdade justa é que os judeus, muito mais que os mouros,
constituíam para El-Rei uma fonte de arrecadação de tributo e de arregimentação
de oficiais mecânicos que faziam falta no reino. Por exemplo, entre os que
haviam pedido abrigo a El-Rei, xpulsos do reino dos seus sogros, contavam-se
ferreiros, latoeiros, malheiros e armeiros, mais hábeis e de muito mais labor a
comparar com os calaceiros sem qualificação que se arrastavam pelo reino.
O grande temor de El-Rei, todavia era que extinto e proibido o judaísmo
pela conversão violenta de todos os seus membros transmutados de repente em
cristãos-novos, lhes ficasse, mesmo em segredo, debaixo da pele, a raça maldita
do judaísmo. No país de seus sogros dizia-se:
- Coon el Rey y con la Inquisicion, chitón! [Caluda, com El-Rei e a Inquisição maldita)]. Mas isso era do lado de lá das fronteiras. Deste lado, não havia Inquisição (maldita). O que havia realmente era uma sem-vergonha permanente. Ao passo que, no reino vizinho…
O cardeal contara-lhe, muito entusiasmado, que: - Pais e mães,
maridos e mulheres, irmãos e irmãs são torturados até se tornarem testemunhas
de acusação uns dos outros, sem saberem qual dos outros está na prisão; e a não
ser que cada um confesse todo o acto específico de judaísmo que ele ou ela
cometera, a confissão nada vale. Há três espécies de judaizantes: primeiro,
aqueles contra quem não existem provas de acusação suficientes e que são mandados
embora depois de pagarem os encargos. Aparecem de hábitos negros e uma vela na
mão. Os de segunda categoria, que traziam sambenitos amarelos com uma cruz
vermelha são acusados ou condenados da seguinte forma:
- Os deputados do Santo Ofício da Inquisição (malditos), etc. atendendo a que N., sendo cristão baptizado e obrigado a viver de acordo com a fé católica, tem vivido de acordo com a Lei de Moisés e daí aguarda salvação, e, de quem há evidência que põe uma camisa lavada nas noutes de sexta-feira, jejua todos os sábados até à noute e não come porco, lebre, coelho ou peixe sem escamas (estas são as únicas provas) declaramos que é judeu.
Mas porque confessou os seus crimes e promete no futuro obedecer ao Papa e à Igreja
Católica é condenado apenas a perder todos os seus bens. Imediatamente faz a
abjuração, é tocado com a vara e com a aspersão de um pouco de água benta e é
declarado bom cristão». In Alexandre Honrado, Os Venturosos, Círculo
de Leitores, Braga, 2000, ISBN 972-42-2392-2.
continua
Cortesia de C. de Leitores/JDACT