A Misteriosa Protectora
«Em Abril, fazia então três anos que João Alberto viera tomar conta da
escola, apareceu na aldeia, com desabalado espanto de todos os seus moradores,
um carro que deitava fumo pelas traseiras e corria tanto, como o comboio de
Coimbra por cima dos carris; da linha férrea, apesar de se lhe não ver coisa
que o puxasse. Estava o regedor na horta a fazer a rega do couval, quando o
pasmoso carro passou. - Ó Zé Artilheiro - disse ele para o criado, que tinha sido
praça num regimento de Lisboa - olha para aquele estafermo daquele carro! Dá
urros como um toiro, anda sem cavalgaduras, e corre que nem que tivesse o diabo
no ventre! O Zé Artilheiro endireitou-se, muito senhor de si, e com seus ares
de doutor, explicou pausadamente, tomando sabor às grandes e sábias palavras
que dizia:
- Daqueles vi eu uns poucos
quando foi de uma pa rada em Lisboa. Aquilo é uma engenhoca cheia de molas, que
traz em si umã coisa a arder chamada cansolina, que cheira mal como
seiscentos diabos! Chamam-lhe lá um aitomóvle. Gasolina e automóvel devia
dizer, mas não sabia, coitado. Tinha a desgraça de não saber ler e a outra,
quase igual, de nem ao menos pedir explicações a respeito do que via. Nem
sequer o ouvido o ajudava a repetir fielmente as palavras que outros, menos
ignorantes do que ele, sabiam dizer.
Soavam-lhe erradas e retorcia-as toscamente na sua boca de analfabeto.
Nisto valia ele menos que os papagaios do Brasil. Mas deixemos o Zé Artilheiro a discretear com o regedor
a respeito do automóvel que passou e vamos saber aonde foi ele dar pela estrada
ladeirenta da aldeia. Parou no terreirozito em frente da escola. Muita gente se
foi juntando para ver o mostrengo,
mas ninguém ousava aproximar-se dele. Dava que entender aos mais medrosos o resfolegar
daquele espantoso carro, que dava ideia de uma grande alimária a arquejar de
cansada.
Do automóvel desciam, instantes depois, duas senhoras, ambas vestidas
de luto. Uma tinha cabelos brancos e o seu andar era vagaroso e pesado; a outra,
ágil e donairosa, dava bem a perceber que estava em plena mocidade, apesar de se
lhe não ver o rosto, que um grande véu de crepes, como se fosse viúva, completamente
lhe velava. Elas a apearem-se, e o antigo mestre-escola da aldeia, o velho que se
aposentara depois de quarenta :anos de magistério, a atravessar o pequeno largo
no passo curto e arrastado de quem leva em cima de si o peso de sessenta e sete
anos de idade. Encaminhou-se para ele a dama que trazia crepes de viúva. O
velhote parou, tirando o chapéu, que parecia quase tão antigo como ele.
- Desejava pedir-vos o favor de
uma breve informação - disse-lhe a dama depois de o ter cumprimentado, baixando
a cabeça. Diogo Silveira, assim se chamava o antigo mestre-escola, notou logo
uma suave música de mocidade e um brando tom de mágoa na voz daquela senhora que
trazia o rosto, coberto de luto. - Tudo o que eu souber e puder dizer-vos -
respondeu com certo embaraço de pessoa acanhada, que nunca houvesse convivido
senão com a simples gente das aldeias. - Dizei-me então o nome do professor
primário desta povoação. – O que veio para aqui, vai em três anos, chama-se João
Alberto. - Vive só? - Não, vive com a mãe, uma santa senhora de cabelos brancos...
- Sim, quase uma velhinha... Mas não era bem isso o que eu desejava saber. Perdoai
a impertinência e dizei-me se esse professor não tem o apelido de Condeixa.
- Se o tem, minha senhora, não usa dele, nem mesmo nos papéis oficiais.
Tenho razões para o saber melhor que ninguém aqui na aldeia, Era eu o professor
que João Alberto veio substituir, e sou quem mais convive com ele. Aqui se tem
conservado com aprazimento de todos e abençoado proveito dos rapazitos da
escola. - Se não fosse o receio de abusar da vossa benevolência, pedir-vos-ia outro
favor, ainda maior. - O que for da vossa vontade, e perdoai que não saiba
tratar-vos como, quem sois. Vai em trinta e tantos anos que não saio desta
aldeia.
- Mas não, tem de que pedir-me
perdão quem tão afectuosamente me tem ouvido. Peço-vos a fineza de uns minutos
de informações reservadas em proveito do vosso colega João Alberto. - Colega e
amigo, minha senhora. E até me podia dizer também discípulo dele, pois que,
apesar dos meus sessenta e sete anos, com ele tenho aprendido o que pode e deve
ser o professor primário que eu nunca fui, por mal dos meus pecados! Senhora, a
minha casa é rústica e pobre como eu, mas, tal como é, vo-la ofereço para essas
informações reservadas que julgais proveitosas para João Alberto». In
Campos Júnior, Pedras Que Falam, romance histórico, edição Romano Torres,
Lisboa, 1953.
Cortesia de R. Torres/JDACT