O importante não é aquilo que
fazem de nós, mas que nós mesmos fazemos do que os outros fizeram de nós. In
Jean.Paul Sartre
Trata das advertências ao ledor e de outros teores de idêntico
interesse
«Convém precisar o tempo em que me sento para confiar ao papel o relato
dos reais acontecimentos que findaram neste ano de cinquenta e um, depois de
mil e novecentos, hoje é nosso Presidente da República, Sua Excelência, o
Senhor Francisco Higino Craveiro Lopes, sucede ao Magnânimo António Óscar de
Fragoso Carmona que reinou, no sentido presidencial do termo, durante vinte e
cinco anos, desde mil e novecentos e vinte e seis, e só não morou por mais
tempo no cargo porque entendeu Deus levá-lo para junto de si em Abril deste
ano, bem-haja ao nosso defunto presidente, o primeiro do Estado Novo, que muito
fez por este nosso cantinho, ainda que marioneta, no sentido mais desprendido
da palavra.
Tudo se iniciou há dezoito anos, nos idos de trinta e três, e é minha
tenção que fique impresso para a futuridade dos eventos sobrevindos, desde a
nascença de Mariana Silveira, a mulher desta história, até à data de hoje.
Porquê esta mulher, perguntar-se-ão todos os que de nós querem motivos para as coisas,
bem, porque uma mulher são todas, assim como todos os machos são um homem, e
neste grande império é digna de nota esta mulher de quem falaremos, filha de um
oficial do Exército, mas já lá iremos, antes desfiaremos a meada da causa de
tanto frufru porque tudo tem origem numa semente que conduz ao móbil e não o
contrário, por tal retrogradaremos ao três de Abril do ano capicua previamente
mencionado.
Alguns entenderam a monta desta diegese e colaboraram o melhor factível
na cedência das verdades por si vividas ou testemunhadas, entenda-se por melhor
factível a versão menos lesiva para as suas próprias pessoas, armaduras que se
compreendem, pois são os humanos todos passíveis de passos erreiros durante os
dias da vida, quem não os cometa é, por certo, santo ou santa e nem mesmo esses
passam impunes na terra, somente Jesus Cristo, filho de Deus Pai, mas isso são
outros assuntos que não importam, já que falamos de seres imperfeitos, coisa
que Jesus Cristo não foi, caso único até ver, outros entenderam por não se
associarem a esta demanda, porventura por perceberem também a monta, mas de um
outro prisma, outros por já terem perecido, seja como for, ambos no seu direito
de calar as verdades, conquanto esta não seja a época dos direitos, antes dos
deveres, o de calar e cumprir e mesmo eu, aqui sentado a deitar estas linhas,
tenho de ter abispamento com aquilo que escrevo para que não passe os meus
últimos dias numa alcáçova, aquém ou além-mar, sem caneta ou papel, só com pele
e ossos, os meus, ou veja mesmo os meus últimos dias abreviados pelas fundas
que as nossas digníssimas forças da autoridade entendem por dar. Nada disto
fazem por mal, apenas para nosso bem, sabemo-lo, nós é que tendemos a
desviar-nos do trilho marcado há muitos anos e ainda hoje pelo nosso sublime e
ditador Presidente do Conselho, …, o titereiro, no mais excelso dos
significados, o timoneiro que nos conduz pelos mares da justiça (?) e da integridade,
da reverência a Deus Nosso Senhor, da mesura, do aforro, da afoiteza em relação
ao futuro, na certeza de que estamos no bom caminho, tanto na terra como no
céu.
Findas estas palavras de apreço, manda a prudência que se preconize a
todos os que de nós conservem estas páginas entre as mãos, sobre os
inconvenientes de tal acto, não se dirá para que não o leiam, pois foi escrito
para esse efeito, mas que o abriguem em local à prova de olhos aleivosos, não é
pretensão do contador que sejam entregues à malha justiceira deste magnificente
país, berço dos antepassados mais lendários da história do mundo, e amarguem na
pele o flagício intrépido de homens com rei e roque, com lei e coque, sem freio
no baque, longe de nós tais cogitações, a mónita está feita, na certeza idêntica
de que não comentarão por qualquer espécie de bufo ou sopro, por mais rápido
que seja, as palavras e as gestas das quais tomarão agnição nas linhas
seguintes. Ninguém sabe, ninguém viu, não aconteceu». In Luís Miguel Rocha, Um País
Encantado, Planeta Editora, Lisboa, 2005, ISBN 972-731-176-8.
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