Crónica de uma difamação
anunciada
Uma criança de peito
«Em meados de Março de 1439,
quando faltavam à rainha cerca de quinze dias para terminar a gravidez, faleceu
a sua filha mais velha, a infanta Filipa, de oito anos, vítima de uma sequela
da epidemia de peste bubónica que acabara com a vida do seu pai. Perante a
possibilidade de isso ser utilizado pelos seus adversários políticos para tentarem
retirar-lhe a custódia do rei, D. Leonor decidiu sair de Lisboa. A 16 de Março,
depois de assinar com o cunhado uma carta através da qual se pretendia aliviar a mingua de legumes e outros mantimentos
de que sofria o povo, anunciou que abandonava a cidade. Enquanto os camareiros
preparavam a partida, o pequeno rei e o seu irmão, na altura herdeiro, infante
Fernando, foram levados para Almada, no outro lado do Tejo, e alojados na
quinta do Alfeite, antigo feudo das rainhas de Portugal.
NOTA: Esta propriedade foi doada pela rainha D. Leonor Teles ao
seu almoxarife David Negro. Este ver-se-ia expropriado da mesma após a batalha
de Aljubarrota, por causa da sua colaboração com os castelhanos, e doada ao
condestável Nuno Álvares Pereira. D. Cinfa, mulher de David, e os seus filhos
interpuseram recursos alegando que não tinham tido nada que ver com as relações
do almoxarife. Na mesma se refugiara o monarca Duarte durante una epidemia de
peste anterior e porque começaron de
morrer de pestenença em Lisboa, mandou a Raynha sua molher, e os Ifantes seus
filhos a Sintra, elle se foi a huua Quintaa, que se diz Monte Olivete, junto com
Sancto Antam, onde esteve alguus diaas, e dhi por evitar perigos dos aares
corrutos que se cada vez mais ascendian, se foy a Santarem. Rui de Pina,
Chronica de El-Rey D. Duarte.
A soberana e as suas duas filhas, as infantas Leonor e Catarina, de
cinco e três anos respetivamente, instalaram-se numa residência situada a cerca
de mil passos fora das muralhas, a oeste de Lisboa: a quinta do Monte Olivete,
situada sobre uma colina de onde se podia ver Almada. Era o mesmo local onde um
rei castelhano, bisavô da rainha, queimara e destruíra campos e vinhas durante
o cerco ao qual submeteu a cidade de Lisboa em 1373. Graças a documentos da chancelaria régia, sabemos que ali se
encontravam a rainha e as infantas a19 de Março de1439,e que a 22 de Março D. Leonor fez uma breve visita a Almada
para ver os filhos, tendo depois regressado a Monte Olivete.
NOTA: Enrique II de Castela (1333? -1379), o das Mercês, primeiro rei da dinastia de Trastâmara;
empreendeu esta acção no Monte Olivete por conselho de Diogo Lopes Pacheco
(1305-1383), oitavo senhor de Ferreira de Aves.
A rainha deu à luz pouco depois do seu regresso, o que levou a datar o
nascimento da infanta Joana de Portugal em finais de Março. A futura rainha
consorte de Castela veio ao mundo num parto assistido por Catarina Afonso, a
primeira parteira ao serviço da família real portuguesa da qual se tem registo.
Uma mulher originária de Évora que ainda recebia uma pensão da Câmara em 1446, já depois da morte da rainha D. Leonor.
Como era tradicional no caso dos infantes da Península Ibérica, Joana
de Portugal não seria amamentada pela mãe, mas por uma ama de leite
cujo nome se desconhece, embora se tratasse provavelmente de uma mulher muito ligada
a ela, uma vez que permaneceria ao seu lado pelo menos os vinte e três anos
seguintes. Em Castela, a escolha de uma ama real era considerado algo tão
fundamental que um rei, tio da rainha D. Leonor, tinha pessoalmente encarregado
da escolha da ama de leite dos seus filhos a prioresa do mosteiro de Santo
Domingo el Real de Toledo, um convento para o qual a infanta Joana seria
enviada anos mais tarde. Geralmente, as escolhidas eram esposas de pequenos fidalgos
de província, necessariamente cristãos velhos.
NOTA: Além do cronista Gaspar Dias de Landim, também o
afirma Rui de Pina, a rainha se foi a uma
quinta junto a Santo Antão, que se chama Monte Olivete... E alli pariu a
Infante D. Joana, que despois foi Rainha de Castela. No local onde, actualmente,
se ergue o Museu de Ciências Naturais, que tem ao fundo o Jardim
Botânico de Lisboa; a poucos metros de onde nasce a rua do Monte Olivete em
direcção ao Tejo.
No entanto, a rainha D. Leonor de Portugal, recorrera a mulheres de diferentes
origens se bem que quase sempre casadas com membros da nobreza de serviço na
corte há várias gerações. Segundo a tradição portuguesa, anterior ao nascimento
do reino, procurava-se por esse meio reforçar os laços de fidelidade entre os
membros da família real com certas linhagens estratégicas. Não apenas através
das amas de leite e dos seus maridos, mas também por meio da relação que se
criava entre os infantes e os respectivos irmãos de leite ou colaços. Esta
circunstância também ocorreria no caso da infanta Joana com o filho da sua
ama. Afonso de Sequeira, seu colaço, chegaria a ser um dos oficiais mais
importantes da casa de Joana como rainha de Castela. É provável que
pertencesse à mesma linhagem do aio do avô paterno da infanta o antigo mestre
de Avis, mais tarde João I de Portugal.
NOTA: Frei Fernando Rodrigues de Sequeira (morte provável em
1431), aio do mestre de Avis
em 1387, futuro João I de Portugal, comendador-mor em 1430. Também não se pode
descartar que fosse aparentado com Leonor Gonçalves, que fora uma das amas do
herdeiro, e irmã de outra ama de leite de Afonso V, Catarina Gonçalves, casada
com Martim Vaz de Sequeira, possível parente ou até descendente de frei Fernando.
Com o que se manifestaria a origem
social algo modesta das amas eleitas pela rainha D. Leonor,
possivelmente em Évora, que se compensava
genealogicamente através da sua união com pessoal da nobreza de serviço na
corte. Mecia de Sequeira, outra possível parente do descendente de frei Fernando,
foi certamente ama da princesa santa
Joana de Portugal, sobrinha carnal da nossa biografada.
Por isso chama a atenção o facto de a documentação nunca mencionar a
identidade da sua mãe. Sobretudo porque o elenco das amas de leite da casa real
portuguesa é um dos mais bem documentados entre os reinos da Cristandade, em
especial a partlr da instauração da dinastia de Avis». In A Rainha Adúltera, Joana de
Portugal e o Enigma da Excelente Senhora, Crónica de uma difamação anunciada,
Marsilio Cassotti, A Esfera dos Livros, Lisboa, 2012, ISBN 978-989-626-405-5.
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