terça-feira, 28 de maio de 2013

Almocreve de Petas ou Moral Disfarçada, para Correcção das Miudezas da Vida. José Rodrigues da Costa. Entre os Pastores do Tejo. Josino Leiriense. «… achara hum sugeito de sã consciência hum papel de poesia, que mostra ser muito antigo, e traducção muito rara pela energia da sua locução, armonia, e suavidade de seus versos, e o quer restituir a quem o perdesse…»

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De arêa, cal, e pedra os que edifícão baixas, mas necessárias miudezas, as Torres erguem, que tão altas ficão.

Arroios 17 de Abril
«Avisão do Lumiar, que na estrada do Campo Grande da parte do Ferrador, que fica ao Norte, achara hum sugeito de sã consciência hum papel de poesia, que mostra ser muito antigo, e traducção muito rara pela energia da sua locução, armonia, e suavidade de seus versos, e o quer restituir a quem o perdesse, logo que mostre com testemunhas ter possuído o original da presente Obra». In Almocreve de Petas ou Moral Disfarçada, para Correcção das Miudezas da Vida.

A Aranha da boa flor faz má peçonha; o estomago damnado, em mal converte, qualquer, que nelle bom licor suponha.

Ao rio de Lessa
Ó Rio de Lessa,
Como corres manso;
Se eu tiver descanço,
Em ti se começa.
Sempre socegados
Vão teus movimentos:
Não te turhão ventos,
Nem tempos mudado.

Corres por arêas,
E bosques sombrios:
Não te turbão rios,
Nem fontes alhêas.
Nasces de hum penedo
Tosco, e descomposto:
A ti mostra o rosto
A manhã mais cedo.

A Aurora em nascendo,
Quando estás mais liso,
Com alegre riso,
Em ti se está vendo.
Quando o mar não sôa,
E passão mil vélas,
Em ti faz capelas
Com- que se coroa.

De álamos cercados
De viçosa hera,
Sempre a Primavera
Coroa teus prados.
Logrem teus salgueiros
Mil tempos serenos:
Nunca serão menos
Os teus amieiros.

Por ti cantão aves
Só por te ver quedas,
Mil cantigas ledas,
E versos suaves.
De laços, e redes
Crião sem receio;
Seguras no seio
De teus bosques verdes.

Dem-te as noites somno,
E com larga mão
Flores o Verão,
Fructos o Outono.
Sombra no Estio,
Sem nenhum resguardo;
Neves dê ao prado
O Inverno frio.

Por ti canta Abril,
Quanto cuida, e sonha,
Ora com sanfonha,
Ora com rabil.
Quando se levanta,
Quando o Sol mais arde,
Assim canta á tarde,
A noite assim canta.

Para que são, Maio ,
Tantas alegrias,
Pois teus longos dias
Passão como raio?
Por muito que tardes,
São tardanças vãs:
Forão-se as manhãs,
Ir-se-hão as tardes.

Para que te gabas
De teus vãos amores?
Para que são flores,
Pois tão cedo acabas?
Em espaço breve
Chega ao mar o Douro:
Os cabellos de ouro
Se fazem de neve.

Ò rio de Lessa,
Fructos em Janeiro
Nascerão primeiro
Que de ti me esqueça.
Primeiro era Agosto
Nevará sem calma,
Que o tempo desta alma
Aparte teu rosto.

Algum tempo manso,
Deos o ordene assi,
Em que torne a ti
Com algum descanço.

In José Daniel Rodrigues da Costa, Entre os Pastores do Tejo, Josino Leiriense, Almocreve de Petas ou Moral Disfarçada, para Correcção das Miudezas da Vida, Com licença do Desembargo do Paço, Officina de J. F. M. de Campos, Alfredo David, Encadernador, Lisboa, 1819.

Cortesia de Alfredo David/JDACT