O Martírio do Infante Santo e a Expansão Portuguesa (Século XV)
«As narrativas sobre o desastre de Tânger, 1437, e o martírio do Infante
Santo (?) Fernando tem sido objecto de estudo desde a célebre crónica de
frei João Álvares, que tem sua primeira versão editada em 1527 tendo por nome Chronica dos
Feytos, Vida, morte do Infante Fanto D. Fernando que Morreo em Fez,
posteriormente foi também editada em Coimbra em 1577. Para Serrão (1999), as duas edições correspondem
a momentos de crise na história da expansão portuguesa em Marrocos. O
alargamento do reino português fazia parte do projecto expansionista já
iniciado em 1415 com a conquista de Ceuta.
Ao ocupar Ceuta, Portugal ia tão longe
quanto possível na reserva de espaços ao seu ulterior projecto
expansionista...era pois triunfo de grande valor a ser exibido perante Castela
e aos olhos atentos dos restantes reinos cristãos e do papa. Desde seu
início o estabelecimento dos portugueses em África foi realizado sob o signo de
Cruzada. O alargamento da conquista marroquina dividiu opiniões, mas a possibilidade
de uma política expansionista de carácter internacional e a defesa da fé cristã
frente ao Islã, numa época em que o perigo turco no Oriente inquietava a
Europa, era um objectivo que a todos interessava.
Para dar continuidade ao projecto expansionista e proteger
Ceuta era preciso ocupar mais praças no norte africano (num período de pouco mais de cem anos, ou seja, entre 1415 e 1521, Portugal conquistou,
ocupou e construiu no Norte da África um conjunto significativo de cidades e
praças fortes, mantendo aí uma presença ininterrupta, sobretudo de caráter
militar). A expedição a Tânger foi organizada durante o reinado do monarca
Duarte. Nas Cortes de Évora de 1436
foi decidido apoiar a iniciativa. Segundo o cronista Rui de Pina os
principais entusiastas da expedição foram os infantes Henrique e Fernando. Em 1437 a expedição partiu de Portugal:
- Assente, por decisão régia, o ataque à praça marroquina após complexos trâmites que não importa aqui rever, o Infante e os que o acompanhavam, entre eles, naturalmente João Álvares, entraram a 25 de Julho no navio ancorado, em frente da cidade de Lisboa, o qual seguiu para o Restelo, voltando o Infante à capital para se despedir dos soberanos. Era uma quinta feira, 22 de Agosto, quando a armada partiu do Restelo, e, cinco dias mais tarde, estava em Ceuta. Em 9 de Setembro foi repartido o contingente em duas frações, seguindo por terra a maior delas, apesar dos perigos que o caminho oferecia. Chegaram finalmente à vista de Tanger no dia 13.
Foram 37 dias de luta. As fontes divergem
quanto à iniciativa de um acordo, mas a maioria afirma terem sido os
portugueses a proporem um armistício. A preeminente derrota frente aos mouros
devido à falta de homens e de provisões e a qualidade das fortificações da
cidade de Tanger impediram o sucesso da empreitada. Outro factor que também
colaborou com a derrota portuguesa frente aos mouros foi a fraca estratégia e o
facto de que estando os portugueses demoradamente em Ceuta tiveram os inimigos
tempo hábil para se prepararem para a defesa. Em 12 de Outubro de 1437 o infante Henrique, então chefe da
expedição, decidiu-se pela rendição. Sallah ben Sallah que aguardava o
exército cristão em Tanger já havia recrutado 7000 homens. O exército mouro
cercou os portugueses, cortando-lhes a comunicação com os navios. Sem opção os
portugueses aceitam as exigências dos mouros. Segundo Moreira, as condições da rendição seriam:
- Os mouros deixavam ir livremente os portugueses, apenas com a roupa do corpo;
- Todo o material militar, assim como os cavalos, que estavam no arraial seria entregue aos mouros;
- A cidade de Ceuta deveria ser devolvida;
- O rei Duarte teria que estabelecer com eles, por mar e por terra, paz definitiva, assim como com todos os mouros da Berberia;
- Sallah Ben Sallah daria seu filho como garantia de segurança de embarque dos cristãos, sem confrontos;
- Como garantia da entrega de Ceuta, assim como todos os seus cativos, ficaria refém o Infante Fernando acompanhado por um pequeno grupo.
Os debates que envolvem o
desastre de Tanger são vários:
- Rui de Pina acusa o infante Henrique pelo insucesso da empreitada. Sabe-se, porém que durante cinco meses o Infante manteve-se em Ceuta acompanhado da maioria de seu exército. Procurava garantir que a cidade não fosse entregue e tentou por todos os meios resgatar seu irmão;
- Clínio Amaral, 2009, em artigo sobre as discussões historiográficas sobre o Infante Santo afirma que os debates sobre a derrota em Tanger trouxeram a luz os motivos que levaram o Infante Fernando a participar da expedição;
- Para Luís Albuquerque, o infante Fernando optou por essa aventura devido à sua ambição em aumentar a fortuna, cujo valor considerava insuficiente. No entanto, acabou numa masmorra, morto, abandonado por razões de Estado, mas transformado em santo (?) pelo imaginário popular.
Nas cortes de Leiria de 1438
foi decidida temporariamente a sorte de Ceuta e consequentemente dos cativos. Lisboa, Porto, o Algarve, o grosso da
nobreza e altos dignatários da Igreja eram pela conservação da praça e logicamente
pela continuação do projecto. Pelo que auferimos das cortes alguns concelhos e os infantes Pedro e
João eram pela entrega de Ceuta. Diante do impasse a resistência aos
mouros foi a posição assente. No mundo ocidental, especialmente no contexto
português da época, a mentalidade cruzadística e a missão preconizada de defesa
da fé cristã frente à muçulmana não podem ser desprezadas como razões
suficientes para o não cumprimento do acordo e o abandono do Infante Santo no
cativeiro. O desastre militar e o impasse político afectaram profundamente o rei
Duarte. Como rei não poderia desistir de Ceuta, mas obviamente se
sentira infeliz com a sorte do irmão. Em Setembro de 1439 morre o rei em Tomar. A crise sucessória que tomou conta do
reino impediu que se prosseguissem as negociações relativas à libertação dos
cativos. Desse modo, abandonado à própria sorte, morre em cativeiro o Infante
Fernando (1443)». In Renata
Sousa Nascimento, O Martírio do Infante
Santo e a Expansão Portuguesa, Século XV, Universidade Federal de Goiás,
Anais do XXVI Simpósio Nacional de História, ANPUH, São Paulo, 2011.
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