terça-feira, 28 de maio de 2013

O Mistério do Infante Santo. Jorge Sousa Correia. «… deram lugar a um brilho intenso, louco, gerador da mais incontida agitação. - Promessa cumprida! Promessa cumprida! - clamava o rei, de um lado para o outro da sala pouco folgada, elevando a voz de cada vez que pronunciava as palavras»

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«(…) Àquela hora da noite estaria sua senhoria de pé? Recebê-lo-ia? Estenderia a sua mão até junto da dele? Deixá-lo-iam ao menos chegar perto do rei?, tudo perguntas que o cavaleiro até chegar ao destino não podia responder. Encurtando o caminho, o mensageiro subiu a colina na direcção do Castelo de São Jorge, onde o rei dormia a essa hora o sono dos heróis. Ali chegado, verificou espantado como as portas se lhe abriram assim que anunciou ser enviado do adail-mor Diogo de Bairros. Aquela surpreendente facilidade mais reforçou nele a importância da missão que o levava antes de todos os tripulantes à casa do poder real, sentindo um desejo enorme de saber do que tratava a missiva que transportava, uma tentação imprópria, que o mensageiro logo reprimiu, não se atrevendo a quebrar o lacre que testemunhava a inviolabilidade da carta e a identificação da origem. Finalmente franqueou as últimas portas até à antecâmara onde o rei já o esperava. Lá dentro, a visão do monarca foi para ele uma experiência única, ao contemplar o maior senhor de Portugal nos seus mais simples preparos.
Vestido apenas com umas bragas feitas de linho bragal, enfiadas à pressa quando o informaram da presença do mensageiro, Afonso V mostrava à reduzida audiência um peito rijo, musculado, reflexo da constante prática de cavalaria e do exercício das armas. Embora tivesse fama de cuidar muito bem da sua imagem, uma vaidade que o distinguia entre outros da sua condição, naquele momento, em que mal controlava a emoção, o rei excluía mesuras e etiqueta inoportunas. Cá está o rei em pessoa. Desprovido, natural, um homem como os outros, rememorava o cavaleiro. O que se seguiu foi uma autêntica desilusão para o enganado homem, não tanto pelo prémio, que acabaria sempre por ganhar, mas porque perderia o melhor do espectáculo. - Meu muito amado senhor - reverenciou-se o mensageiro com um joelho por terra, a mão direita no peito, a cabeça baixa e a carta na outra mão, aquela que lhe impulsionava o braço ao encontro da mão do rei. Não terminou a frase. Afonso V incapaz de controlar a ansiedade, interrompeu-o deseducado.
 - Deixai-vos de preâmbulos, dai-me célere o documento que trazeis convosco, posto que mal posso esperar - disse-lhe, injusto, enquanto ágil no gesto lhe arrancou o escrito da mão. Precipitado, o monarca voltou as costas ao surpreendido cavaleiro e a todos que estavam presentes na sala, seguindo-o apenas o camareiro, seu confidente e homem de confiança, para nos aposentos mais resguardados ler o conteúdo do documento que há tanto tempo esperava com impaciente expectativa. Lá dentro, num gesto sem reflexão, abriu logo a missiva, procurando nas palavras escritas uma justificação para estar acordado àquela hora. Então, numa reviravolta estonteante, a alegria invadiu o rosto do monarca, traindo nele a pose real que a notícia desfazia e a hora autorizava. A mensagem chegava com as notícias esperadas. Num ápice, os olhos, estremunhados pelas poucas horas de sono, deram lugar a um brilho intenso, louco, gerador da mais incontida agitação. - Promessa cumprida! Promessa cumprida! Promessa cumprida - clamava o rei, de um lado para o outro da sala pouco folgada, elevando a voz de cada vez que pronunciava as palavras.
Deteve-se, por fim, fulminado pelo transcendente momento que estava a viver, caindo desamparado de joelhos diante do oratório a um canto dos aposentos. Mãos unidas, pescoço hirto, rosto erguido ao alto, lá foi perscrutando o artefacto litúrgico onde estaria a imagem insubstancial de Deus. Agradecia e evocava a memória do pai, o falecido rei Duarte, a quem tinha feito aquela promessa, um voto que não lhe foi requisitado, antes assumido por uma criança sem idade para reinar, e que, desde tenra idade, quando começou a ter entendimento, sempre conviveu com o olhar triste do pai, sem meios nem apoios para resgatar o ente querido deixado como refém, para que outros sobrevivessem pelo seu gesto.
A sua obsessão terminava naquele dia. Dali em diante, o rei não queria saber de mais nada a não ser o modo como haveria de festejar a novidade, pois o Africano só pensa nas grandes celebrações que vai realizar, dando-lhes o brilho e o significado que o instante merece, sem descuidar em momento algum a sua própria promoção. Não ignora, contudo, que só no final dos festejos poderá gozar os louros do seu empenhamento, porque ao receber a missiva de Bairros, naquela noite, só estava concluída mais uma fase da operação. A seguinte começaria logo depois de mais umas horas de sono, quando desse início aos preparativos que tão grande acontecimento exigia.
Mas para quê tanta precipitação? Afonso V já esperou tantos anos pela conclusão quase feliz do acontecimento, esperará algum tempo mais até que se perceba por que razão reza e dança com uma carta na mão, e só depois terá legitimidade para comemorar.

O Princípio
Na madrugada de 14 de Agosto de 1433, João I deu o último suspiro. O velho rei, após quase cinquenta anos de reinado, um dos mais longos da monarquia portuguesa, cederá o cadeirão real ao primogénito da Ínclita Geração». In Jorge Sousa Correia, O Mistério do Infante Santo, A Revelação dos Pecados da Ínclita Geração, Clube do Autor, Lisboa, 2013, ISBN 978-989-724-067-6.

Cortesia de C. do Autor/JDACT