sexta-feira, 3 de maio de 2013

Breve História dos Judeus em Portugal. Jorge Martins. «… capturando aqueles que se haviam recolhido nas igrejas, carregando mortos e vivos para as fogueiras que se acendiam na capital. Foram três dias de terror, pilhagem e carnificina, de que resultariam, de acordo com os cronistas coevos, entre dois e quatro mil mortos»

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«A situação criada com o baptismo forçado era explosiva. Qualquer sinal de hipotético judaísmo poderia gerar a animosidade cristã. Na verdade, cristão-novo, converso convicto ou não, permanecia eternamente judeu aos olhos da população maioritariamente cristã. Foi nesta conjuntura, favorável ao antijudaísmo, que o citado cristão-novo cometeu a imprevidência. Mal proferiu a contraproducente blasfémia, o povo caiu sobre ele, arrastou-o para a rua e agrediu-o barbaramente até cair inanimado. Prostrado no Largo de S. Domingos, foi identificado pelo irmão, que se debruçou sobre o seu cadáver e gritou lancinantemente: Quem matou meu irmão?!. Acto contínuo, foi igualmente executado pela turba, que, de pronto, acendeu uma fogueira e queimou os dois infelizes cristãos-novos.
Num clima de intolerância crescente, surgiu um frade que proferiu um inflamado sermão antijudaico, enquanto o povo se aglomerava em torno da redentora fogueira aos quais se juntariam mais dois frades dominicanos, frei João Mocho e frei Bernardo, exibindo o crucifixo milagreiro e fazendo apelos sanguinários contra os judeus: Heresia! Heresia! Destruam o povo abominável!.... E assim se espalhou o povo pelas ruas de Lisboa, procurando cristãos-novos que passavam desprevenidos, forçando a entrada nas suas casas, capturando aqueles que se haviam recolhido nas igrejas, carregando mortos e vivos para as fogueiras que se acendiam na capital. Foram três dias de terror, pilhagem e carnificina, de que resultariam, de acordo com os cronistas coevos, entre dois e quatro mil mortos. Na Miscelânea de Garcia de Resende e na Symmicta Lusitana, alegação dos judeus ao papa Paulo III contra a Inquisição (maldita), defende-se as quatro mil vítimas e Damião de Góis, na Crónica de D. Manuel, fica-se pelas mais de 1900 almas. O número de duas mil vítimas é o mais consensual entre os historiadores, de Alexandre Herculano a Yosef Yerushalmi.
O rei Manuel I protelou a sua intervenção no motim e só o fez quando já não havia vítimas para queimar nas fogueiras. Nem Álvaro de Castro, o governador da Casa do Cível, nem Aires da Silva, o regedor da Casa da Suplicação conseguiriam demover a populaça tresloucada, quando tentaram acalmar os ânimos. Embora tardiamente, o rei, informado dos factos quando passava por Avis em direcção a Évora para visitar sua mãe enferma, castigou duramente o povo de Lisboa: sentenciou os responsáveis pela chacina a penas corporais e à perda dos seus bens a favor da Coroa; mesmo os que não tivessem participado no massacre e no saque perderiam um quinto dos seus bens; suspendeu a eleição dos representantes da Casa dos Vinte Quatro e dos seus quatro representantes à vereação municipal lisboeta; retirou as honrarias da cidade; mandou executar cerca de meia centena de amotinados e os dois frades dominicanos, frei João Mocho e frei Bernardo, verdadeiros instigadores do massacre.
Entre os populares lisboetas e os frades dominicanos estavam marinheiros estrangeiros, designadamente alemães, que ajudaram à barbárie, mas que também deixaram relatos escritos, que circulariam no seu país, reportando o sucedido. São fontes pouco conhecidas em Portugal, cujos historiadores se têm cingido aos cronistas que não assistiram aos acontecimentos: Damião de Góis (Crónica do Felicíssimo rei D. Manuel), nascido em 1502; Samuel Usque (Consolação às Tribulações de Israel), nascido entre 1495-1500; Jerónimo Osório (De Rebus Emmanuelis Regis Lusitaniae), nascido no próprio ano do massacre. Todos eles eram demasiado jovens para compreender os acontecimentos.
Foi o historiador Yosef Yerushalmi quem divulgou novas fontes, tais como os citados panfletos alemães e uma interessante obra de Salomon lbn Verga, um judeu espanhol exilado em Lisboa, que também terá presenciado (parcialmente?) os acontecimentos. De acordo com este último, o milagre fora inventado pelos dominicanos, que teriam congeminado a luz por detrás do crucifixo, criando a ilusão de estar a irradiar daí». In Breve História dos Judeus em Portugal, Jorge Martins, Nova Vega, colecção Sefarad, 2011, ISBN 978-972-699-920-1.

continua
Cortesia de Nova Vega/JDACT