quinta-feira, 16 de maio de 2013

Cister. Os Documentos Primitivos. Aires Nascimento. «A fundação de Molesrne, em 1097, não gozava. de plena autonomia, pois dependia em vários aspectos daquela, que mantinha o direito de intervenção na escolha do abade de entre os monges da abadia-mãe e a própria desclassificação para o estatuto de cela em caso de relaxamento monástico»

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«(…) Novo Mosteiro chamam os primeiros documentos cistercienses à fundação que se implanta no coração da Borgonha, a alguns quilómetros de Dijon; novo porque se intentava a novidade de vida, pelo regresso à pureza da Regra, mediante uma pobreza fecunda, mãe soberana e inspiradora das virtudes monásticas. Cistelium evoca, ao tempo, não propriamente um lugar dos arredores de um antigo acampamento romano, cis-tertium, o terceiro marco, mas a rudeza do ambiente em que não havia senão mato, juncos, charcos de água e floresta (a forma Cistercium / Cistelium / Cistellum, e a correspondente românica Cistel remetia para este significado, mas não é inverosímil que possa derivar simplesmente de um antigo marco miliário, cis-tertium; Les cisterciens, in Les Ordres Religieux, Paris, 1979). Sobre essa imagem recai o desafio da transformação, através de uma intervenção que é modalidade de agir por sua conta, esperançados certamente na ajuda divina, mas dispostos igualmente a viver apenas do produto do próprio trabalho, sem recurso a outros expedientes, de favor e de domínio ou de dependência.
As opções são radicais e têm consequências que a nova comunidade monástica quer levar a bom termo. O local, por maninho que fosse, não era baldio e o senhor feudal conhecia bem os limites das suas propriedades. Amigo de Roberto, Eudes I, duque de Borgonha, que em tempos anteriores se mostrara magnânimo para com a comunidade de Molesme, embora noutras ocasiões se tivesse mostrado ávido de alargar os seus domínios e de ganhar riquezas fáceis, (conhecido é o episódio passado com Anselmo, arcebispo de Cantuária, quando atravessa o seu território, certo dia do ano de 1097; convencido de que encontra riqueza na sua bagagem, o duque ataca-o com as suas tropas, mas tem de se render à evidência de uma pobreza que o converte em protector do santo arcebispo que peregrina até Roma), agora, também a pedido do arcebispo de Lião, convence um seu vassalo, o visconde Renard de Beaune, a ceder aos monges o terreno necessário, em três actos que alargavam a concessão inicial, em troca de benefícios que o próprio duque se compromete a honrar, um rendimento anual de vinte soldos, escudos em ouro, e uma autorização para o visconde e seus filhos cultivarem vinha nos seus terrenos. Já então fica claro que os monges não pretendem aceitar nada que os coloque em dependência de outros ou lhes retire a liberdade interior de tudo decidir segundo o que considerarem melhor para a reforma que se propõem. Ela é um misto de eremitismo e de cenobitismo, pois, se é afastamento do mundo, é também comunitarismo vivido no recolhimento mais completo sob a direcção de um abade, que, como manda a Regra, assume a plenitude de funções no cuidar espiritual e materialmente dos seus monges.
Para preservarem a sua inteira disponibilidade de serviço divino e de separação com o mundo, vão os monges reclamando actos que incluem formas específicas de administração e de ocupação de locais: a forma de alódio (território não sujeito a direitos alheios) é o núcleo da primeira concessão que perfaz um perímetro destinado aos edifícios fundamentais e às explorações de subsistência; a segunda concessão envolve uma igreja, mas relativamente a ela o senhor tem de declarar que se trata de um local isento, porque pertence só a Deus, de tal forma que os monges tomam conta dela como se fossem os primeiros ocupantes; pela terceira concessão, o usufruto de uma parte do terreno fica adstrito a dois servidores e uma serva, mas estes ficam sujeitos ao visconde e não aos monges.
Mais do que esta liberdade frente a intervenções estranhas e a independência tanto de monges como de seus colaboradores, que terá consequências de monta nas próprias relações de trabalho, ressalta o significado jurídico da inclusão do abade de Molesme no primitivo grupo que partia para Cister. Se Roberto tivesse ficado em Molesme, a fundação teria ficado submetida à abadia-mãe, fosse como priorado, fosse a modo de Aulps. A fundação de Molesrne, em 1097, não gozava. de plena autonomia, pois dependia em vários aspectos daquela, que mantinha o direito de intervenção com o que isso implicava na escolha do abade de entre os monges da abadia-mãe e a própria desclassificação para o estatuto de cela em caso de relaxamento monástico. Isso teria sido uma solução falha; se a iniciativa queria triunfar, era necessário fundar uma abadia completamente sui iuris.
Tinha sido mérito do legado pontifício, a quem os monges tinham recorrido, decidir que o abade partisse com os interessados». In Aires Nascimento, Cister, Introdução, tradução e notas, Edições Colibri, Faculdade de Letras, Lisboa, 1999, ISBN 972-772-032-3.

Cortesia de Colibri/JDACT